terça-feira, novembro 20, 2007

Dia da Consciência Negra


Caros colegas todos,

Hoje é o Dia da Consciência Negra.


Esse dia está marcado para que lembremos todos , independente da cor externa de nossos corpos, os milhares de corpos negros que construíram nossa história.


Inclusive na região sul do Brasil onde tantos se vangloriam de terem sido colonizados por brancos europeus, foram os negros que, junto com todos os migrantes brancos ( que eram quase pretos de tão pobres..) desbravaram e fizeram esse país tristinho, sujo, mal feito, mas nosso. ..

Assim, a todos os colegas, principalmente aqueles que têm como obrigação profissional julgar, prender, denunciar, defender e ensinar, que pensem nas duas letras baixo. A primeira como um alerta, e a segunda como uma esperança...


Axé a todos!



Haiti ( Caetano Veloso)

" Quando você for convidado pra subir no adro

Da fundação casa de Jorge Amado

Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos

Dando porrada na nuca de malandros pretos

De ladrões mulatos e outros quase brancos

Tratados como pretos

Só pra mostrar aos outros quase pretos(E são quase todos pretos)

E aos quase brancos pobres como pretos

Como é que pretos, pobres e mulatos

E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados"


Um sorriso negro ( D. Ivone Lara)

"Um sorriso negro, um abraço negro

Traz felicidade

Negro sem emprego, fica sem sossego

Negro é a raiz da liberdade

Negro é uma cor de respeito

Negro é inspiração

Negro é silêncio, é luto negro é a solução

Negro que já foi escravo

Negro é a voz da verdade

Negro é destino é amor

Negro também é saudade.. (um sorriso negro !)

quarta-feira, novembro 14, 2007

Antecipação da tutela à moda alagoana ou Pede pra sair, Excelência!!!!

Deu no jornal A Tarde do sábado, dia 10/11/07, seção “Últimas Notícias”: O deputado federal Olavo Calheiros, irmão do senador alagoano Renan Calheiros, conseguiu suspensão de publicação de seu nome em matéria jornalística que o atinja direta ou indiretamente. Esta decisão favorável decorreu de um pedido de antecipação dos efeitos da tutela oriunda em uma ação de reparação de danos contra o Jornal “Novo Extra” de Maceió.

Quando um processo inicia, o autor quer provar que o seu direito está sendo ameaçado ou foi ferido por alguém. Ele vai pedir ao juiz que interfira com sua prudência, dizendo que o seu direito – o do autor - é procedente.

O juiz recebe essa petição e inicia o processo. Durante suas fases, vai compreendendo o caso, as alegações, ponderando o que a parte contrária contradita, até chegar a uma decisão final, onde ele vai decidir se o autor tem ou não aquele direito alegado. Se tiver o direito reconhecido, seus efeitos futuros ou passados, passarão a integrar a vida do autor.

Em resumo, o autor pede o reconhecimento de seu direito e os efeitos que esse direito oferece a ele. O juiz vai conceder ou não os efeitos, no todo ou em parte, após o término de todas as etapas do processo.

No inicio dessa conversa com o juiz, o autor pode pedir que os efeitos comecem imediatamente, desde que ele prove inequivocamente que haverá um dano irreparável ou de difícil reparação, que fique reconhecido o abuso do direito de defesa ou que o réu esteja protelando o processo.

O artigo 273 do Código de Processo Civil (CPC) trata desta situação, e indica que o juiz pode conferir a tutela dos efeitos antecipadamente se estiver completamente convencido da verossimilhança da alegação, mostrando a razão de seu convencimento.

O mesmo artigo em seu segundo parágrafo diz o seguinte:

”não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado.”

O juiz, portanto, está proibido de conceder a antecipação da tutela pretendida na petição inicial se o efeito que ele venha a conceder antes do final do processo não poder ser retomado posteriormente, ainda que esteja convencido da verossimilhança da alegação.

Isso é claro porque o que será concedido antecipadamente são os efeitos de um direito que o autor alega, e o juiz não pode saber ainda - pois está no inicio do processo - se ele tem ou terá confirmado este direito. Se a decisão no final do processo for no sentido da não existência do direito do autor, inexistirá também o efeito deste direito. Portanto o efeito a ser antecipado deverá ser do tipo que possa ser apagado, retirado sem causar dano à sociedade.

O que se quer dizer é que ainda que todos os requisitos estejam corretos, ainda que o autor prove que haverá dano irreparável ou de difícil reparação, que haja abuso, etc etc. ainda que o juiz se convença, ele NÃO PODERÁ CONFERIR TUTELA ANTECIPADA SE O EFEITO NÃO PUDER SER RETOMADO NO FIM DO PROCESSO.

No caso em pauta, o pedido do autor foi que o juiz interferisse desde logo, impedindo a publicação do seu nome em matéria jornalística que o atingisse direta ou indiretamente. A grande pergunta a ser formulada pelo juiz deveria ser a seguinte:

Se eu conceder esse efeito agora, eu poderei retirá-lo após o término do processo sem nenhum dano à sociedade, no caso do direito do autor seja provado improcedente?

Em linhas gerais, impedir a publicação de matéria de um homem público em um jornal pelo tempo que durar o processo, pode vir a causar uns danos irreparáveis à sociedade, que também será frustrada de sua garantia fundamental constitucional de acesso à informação descrita no artigo 5º, XIV, entre outros.

Do ponto de vista processual, a decisão fere o parágrafo segundo do artigo 273 do CPC, pois ainda que o direito do autor fosse no final do processo considerado improcedente, ele já teria se beneficiado dos anos e anos de exclusão de seu nome da observação pública. O provimento antecipado seria, portanto, irreversível.

Errou a juíza Maria Valéria Lins Calheiros. E errou mais gravemente por não ter declinado de suas funções no processo: em Alagoas, mesmo sobrenome é motivo suficiente para declarar-se impedida ou pelo menos, suspeita de parcialidade.

Como diria Capitão Nascimento: pede pra sair, Excelência...

quinta-feira, outubro 25, 2007

Mãe é mãe e são todas iguais !!!


A novidade legislativa é a possibilidade de ampliação do prazo de licença maternidade de quatro para seis meses. É importante lembrar que:

1- O projeto faz parte de um Programa para empresas, que receberão vantagens fiscais;
2- A empresa deve estar cadastrada no Programa;
3- A mãe deve ter vínculo empregatício com a empresa;
4- A mãe será beneficiada se ela quiser;
5- A mãe não pode exercer nenhuma atividade remunerada no período da licença;
6- A criança deve estar em casa, não podendo ser colocada em creche ou situação semelhante


O projeto de Lei 281/05 da Senadora Patrícia Saboya que visa o aumento do prazo de licença maternidade pode vir a ser uma Lei “saia-justa”: se você fala bem, erra, se fala mal, parece um tirano.

É preciso que se diga que o aumento do prazo da licença maternidade em dois meses é, em si, louvável. Inúmeros estudos comprovam a importância do laço afetivo estabelecido entre a mãe e o bebê e também, não podemos esquecer disso, o principal fundamento da licença é a amamentação e a vacinação, cuidados imprescindíveis para com a criança. A lei supõe que a mãe em casa vai cuidar exclusivamente do seu bebê, o alimentando adequadamente e cumprindo o calendário vacinal, o que traz benefício direto às famílias e à sociedade como um todo, pois crianças bem nutridas e vacinadas é sinônimo de crianças saudáveis, fora dos hospitais e das taxas de mortalidade oficiais.

A licença maternidade é um benefício de evidente interesse social, matéria de Saúde Pública, com reflexo na Previdência Social, cujo fundamento de implantação provém do direito à saúde, determinado constitucionalmente.

A Constituição Federal, no título “Da Ordem Social, seção II “Da Saúde” , estampa no seu primeiro dispositivo de número 196 o seguinte:

“a saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação."

No mesmo título, na seção III,“ Da Previdência Social”, o artigo 201, determina quais serão as demandas a serem atendidas pela Previdência, e diz em seu inciso II: “ proteção à maternidade, especialmente à gestante”

O Estatuto da criança e do Adolescente, coloca no Poder Público e na sociedade a responsabilidade com suas crianças e adolescentes. Em seu artigo 4º mostra que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público em particular, assegurar, com absoluta prioridade a efetivação dos direitos à vida, à saúde, à alimentação , entre outros, e complementa :

Parágrafo Único: “a garantia de prioridade compreende: (...) c) preferência na formulação e na execução de políticas sociais públicas”.

Na mesma Lei, em seu título II “Dos Direitos Fundamentais”, capítulo I “Do direito à Vida e à Saúde”, diz o parágrafo 3º do artigo 8: “Incumbe ao poder público propiciar apoio alimentar à gestante e à nutriz que dele necessitem.”

Até mesmo o Código Civil, historicamente um diploma legal conservador, sempre determinou a obrigação alimentar de sustento, proveniente do fato de ser pai e mãe, protegido vigorosamente pela execução forçada com possibilidade de prisão civil.

Sendo notoriamente de interesse social, cabe ao Estado a sua manutenção, até porque (veja de novo aí em cima) as políticas econômicas e sociais implementadas para a saúde devem ter cunho UNIVERSAL E IGUALITÁRIO. Assim, sendo pacífica a necessidade de ampliação da licença por fundamento de saúde da criança , todas as mulheres do Brasil que se encontrem na situação de cuidado a uma criança recém nascida, seja por nascimento natural seja pelo procedimento de adoção, devem ter o mesmo direito de alimentar seu bebê por 6 (seis) meses. Excluir mulheres deste direito é inconstitucional, e pior, vergonhoso.

E isso vai acontecer. A Lei é para criação de um programa para as empresas, com adesão voluntária das mulheres. E as trabalhadoras domésticas? E aquelas cuja empresa não aderir ao programa? E, pior de tudo, as funcionárias públicas? Nem o próprio Poder Público admitirá a suas funcionárias tal direito! Qual a razão existencial, técnica ou social que as fariam ficar fora deste benefício, de profundo interesse público ?

Diante disso, se está correta a ampliação do prazo, está errado quem paga a conta. Não se pode deixar um assunto tão importante para as contas públicas e para a política de saúde nas mãos de empresários que só visam o lucro a qualquer preço. Se existe previsão legislativa e interesse do povo brasileiro, então o Estado deve arcar com o benefício. Para todas as mulheres.

O texto e a fundamentação do Projeto de Lei número 281/05 da Senadora Patrícia Saboya do PDT do Ceará está no link:

segunda-feira, outubro 15, 2007

Deficientes cívicos

Um presente aos professores deste país: um belo texto do Professor Milton Santos, publicado no Caderno Mais! da Folha de São Paulo , em 24 de janeiro de 1999.
Feliz Dia dos Professores a todos nós!!!!

Em tempos de globalização, a discussão sobre os objetivos da educação é fundamental para a definição do modelo de país em que viverão as próximas gerações.

Em cada sociedade, a educação deve ser concebida para atender, ao mesmo tempo, ao interesse social e ao interesse dos indivíduos. É da combinação desses interesses que emergem os seus princípios fundamentais e são estes que devem nortear a elaboração dos conteúdos do ensino, as práticas pedagógicas e a relação da escola com a comunidade e com o mundo.

O interesse social se inspira no papel que a educação deve jogar na manutenção da identidade nacional, na idéia de sucessão das gerações e de continuidade da nação, na vontade de progresso e na preservação da cultura. O interesse individual se revela pela parte que é devida à educação na construção da pessoa, em sua inserção afetiva e intelectual, na sua promoção pelo trabalho, levando o indivíduo a uma realização plena e a um enriquecimento permanente. Juntos, o interesse social e o interesse individual da educação devem também constituir a garantia de que a dinâmica social não será excludente.

Em todos os casos a sociedade será sempre tomada como um referente, e, como ela é sempre um processo e está sempre mudando, o contexto histórico acaba por ser determinante dos conteúdos da educação e da ênfase a atribuir aos seus diversos aspectos, mesmo se os princípios fundamentais permanecem intocados ao longo do tempo. Foi dessa forma que se deu a evolução da idéia e da prática da educação durante os últimos séculos, paralelamente à busca de formas de convivência civilizada, alicerçadas em uma solidariedade social cada vez mais sofisticada.

As modalidades sucessivas da democracia como regime político, social e econômico levaram, no após guerra, à social-democracia. A história da civilização se confundiria com a busca, sempre renovada, e o encontro das formas práticas de atingir aqueles mencionados princípios fundamentais da educação, sempre a partir de uma visão filosófica e abrangente do mundo.
Esse esforço, para o qual contribuíram filósofos, pedagogos e homens de Estado, acaba por erigir como pilares centrais do sistema educacional: o ensino universal (isto é, concebido para atingir a todas as pessoas), igualitário (como garantia de que a educação contribua a eliminar desigualdades), progressista (desencorajando preconceitos e assegurando uma visão de futuro). Daí, os postulados indispensáveis de um ensino público, gratuito e leigo (esta última palavra sendo usada como sinônimo de ausência de visões particularistas e segmentadas do mundo) e, dessa forma, uma escola apta a formar concomitantemente cidadãos integrais e indivíduos fortes. Aliás, foram essas as bases da educação republicana, na França e em outros países europeus, baseada na noção de solidariedade social exercida coletivamente como um anteparo, social e juridicamente estabelecido, às tentações da barbárie.

A globalização, como agora se manifesta em todas as partes do planeta, funda-se em novos sistemas de referência, em que noções clássicas, como a democracia, a república, a cidadania, a individualidade forte, constituem matéria predileta do marketing político, mas, graças a um jogo de espelhos, apenas comparecem como retórica, enquanto são outros os valores da nova ética, fundada num discurso enganoso, mas avassalador. Em tais circunstâncias, a idéia de emulação é compulsoriamente substituída pela prática da competitividade, o individualismo como regra de ação erige o egoísmo como comportamento quase obrigatório, e a lei do interesse sem contrapartida moral supõe como corolário a fratura social e o esquecimento da solidariedade. O mundo do pragmatismo triunfante é o mesmo mundo do "salve-se quem puder", do "vale-tudo", justificados pela busca apressada de resultados cada vez mais autocentrados, por meio de caminhos sempre mais estreitos, levando ao amesquinhamento dos objetivos, por meio da pobreza das metas e da ausência de finalidades. O projeto educacional atualmente em marcha é tributário dessas lógicas perversas. Para isso, sem dúvida, contribuem: a combinação atual entre a violência do dinheiro e a violência da informação, associadas na produção de uma visão embaralhada do mundo; a perplexidade diante do presente e do futuro; um impulso para ações imediatas que dispensam a reflexão, essa cegueira radical que reforça as tendências à aceitação de uma existência instrumentalizada.

É nesse campo de forças e a partir dessa caldo de cultura que se originam as novas propostas para a educação, as quais poderíamos resumir dizendo que resultam da ruptura do equilíbrio, antes existente, entre uma formação para a vida plena, com a busca do saber filosófico, e uma formação para o trabalho, com a busca do saber prático.

Esse equilíbrio, agora rompido, constituía a garantia da renovação das possibilidades de existência de indivíduos fortes e de cidadãos íntegros, ao mesmo tempo em que se preparavam as pessoas para o mercado. Hoje, sob o pretexto de que é preciso formar os estudantes para obter um lugar num mercado de trabalho afunilado, o saber prático tende a ocupar todo o espaço da escola, enquanto o saber filosófico é considerado como residual ou mesmo desnecessário, uma prática que, a médio prazo, ameaça a democracia, a República, a cidadania e a individualidade. Corremos o risco de ver o ensino reduzido a um simples processo de treinamento, a uma instrumentalização das pessoas, a um aprendizado que se exaure precocemente ao sabor das mudanças rápidas e brutais das formas técnicas e organizacionais do trabalho exigidas por uma implacável competitividade.

Daí, a difusão acelerada de propostas que levam a uma profissionalização precoce, à fragmentação da formação e à educação oferecida segundo diferentes níveis de qualidade, situação em que a privatização do processo educativo pode constituir um modelo ideal para assegurar a anulação das conquistas sociais dos últimos séculos. A escola deixará de ser o lugar de formação de verdadeiros cidadãos e tornar-se-á um celeiro de deficientes cívicos.
É a própria realidade da globalização _tal como praticada atualmente_ que está no centro desse debate, porque com ela se impuseram idéias sobre o que deve ser o destino dos povos, mediante definições ideológicas sobre o crescimento da economia, como a chamada competitividade entre os países. As propostas vigentes para a educação são uma consequência, justificando a decisão de adaptá-la para que se torne ainda mais instrumental à aceleração do processo globalitário. O debate deve ser retomado pela raiz, levando a educação a reassumir aqueles princípios fundamentais com que a civilização assegurou a sua evolução nos últimos séculos _os ideais de universalidade, igualdade e progresso_, de modo que ela possa contribuir para a construção de uma globalização mais humana, em vez de aceitarmos que a globalização perversa, tal como agora se verifica, comprometa o processo de formação das novas gerações.

Milton Santos é geógrafo, professor emérito da USP e autor, entre outros, de "A Natureza de Espaço" (ed. Hucitec).

terça-feira, outubro 02, 2007

Violaram a Maria da Penha!!!!!



Mal nasceu e a Lei 11.340 de 7/8/2006,(aquela que criminaliza a violência doméstica ) já está sendo desobedecida pelos juizes. É que fez a 2ª Turma do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, quando manteve a decisão do juiz Bonifácio Hugo Rausch da Comarca de Itaporã. Este entendeu ser a Lei Maria da Penha inconstitucional por ferir a igualdade entre homens e mulheres pois, segundo ele, se ambos têm direitos fundamentais iguais, porque privilegiar as mulheres? E continua seu raciocínio, dizendo que as mulheres deveriam ter sido incluídas, no texto da lei, como passíveis de serem rés, quando os homens fossem vítimas. O juiz ainda reclama que o texto de lei não deixa brechas para interpretação, o que inviabiliza a ação do judiciário no caso concreto.

Eis o que não perceberam nem o juiz nem o Egrégio Tribunal :

1-A Lei Maria da Penha está no rol das leis especiais, aquelas cujo conteúdo se voltam para a parcela de pessoas cuja situação é vista, pela sociedade, como merecedora de tutela específica. Assim acontece com os Consumidores, Idoso, Crianças e Adolescentes. Em outras palavras, qualquer estrato da sociedade que figure - ainda que momentaneamente - naquela situação, estará recoberto pela lei. Isso retira a idéia de discriminação.

2- A Lei Maria da Penha explica a que veio já no início do texto, onde se lê:

“Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.”

Portanto, a Lei foi elaborada exatamente para eliminar a discriminação contra a mulher, notória e historiada por todos os setores sociais. Vem tornar prático um mandamento constitucional e dois Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário.

3- A Lei tem legitimidade social, por estar respaldada em amplo debate social, cujo núcleo foram os diversos movimentos de mulheres, estudada e discutida por cientistas sociais e muito festejada por juristas, imprensa e população brasileira.

4- Com relação às “brechas para interpretação”, ao se ler a Lei, percebe-se a existência de pelo menos um COMANDO para o juiz, que DEVE obedecer às determinações legais quando se mostra uma situação de violência, conforme artigo abaixo:

“Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:
I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência; II - determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso; III - comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis.”

5- A Lei sempre apresenta um conteúdo geral, e ao aplicá-la, o juiz pode adequar a idéia colocada na lei ao caso que tem em mãos para decidir. No entanto, ao juiz não cabe criar lei nova, sozinho, só porque ele acha que a lei não é boa. Para isso, existem Associações dos Magistrados, OAB, e outras organizações nas quais os juizes, como qualquer cidadão, têm voz para debater suas opiniões e convicções.

6- Apesar do Congresso Nacional e o Senado não estarem apresentando dignamente o papel social que lhes impõe a democracia, qual seja, o de representar a vontade do povo, ainda é nessas casas que as discussões devem ser colocadas diante da sociedade civil. Não na mesa particular de um juiz, que, diga-se de passagem, sequer foi escolhido pelo povo para criar leis .

7- Não bastasse isso, o argumento de que a Lei Maria da Penha é discriminatória, afronta qualquer raciocínio jurídico primário.

A idéia de Igualdade mais básica, a chamada Igualdade formal, diz que “todos são iguais perante a lei”. O cenário das relações sociais, no entanto, iria aos poucos confirmar que essa igualdade, apenas formal, era insuficiente para não privilegiar nem discriminar, já que as pessoas na vida real não apresentam idênticas condições sociais, econômicas, psicológicas, etc. Diante disso, foi adotada um novo tipo de Igualdade – a substancial, que prevê a necessidade de tratar as pessoas, quando desiguais, conforme sua desigualdade. É pacífico na jurisprudência que ambas as Igualdades devem ser levadas em conta pelo juiz. É a máxima: “os desiguais devem ser desigualmente tratados para alcançarem a igualdade”.

Os Estados hoje têm em sua pauta a reivindicação social de um direito à diferença, ao invés da identidade humana comum sem uma reflexão inteligente. O Direito deve contemplar além das diferenças imediatamente visíveis (tais como Homens e Mulheres, Ricos e Pobres, Crianças e Adultos, Jovens e Idosos), as diferenças encontradas na diversidade cultural e histórica. Ele deve deixar de procurar uma identidade única, cuja idéia central é “todos somos os mesmos seres humanos”, para buscar resolver conflitos nascentes do reconhecimento do outro enquanto um ser diferente.

Diante deste quadro, as decisões proferidas pelo juiz da Comarca, e ratificadas pelos Desembargadores, em um colegiado de notáveis, se mostra desconectada do mundo e sem fundamento jurídico nenhum.

A esses que, como dizia Cazuza, “vieram ao mundo e perderam a viagem”, indico dois livros entre dezenas que tratam do assunto: O livro da Profª Maria Celina Bodin de Moraes (Danos à pessoa Humana - Uma leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais), e do Prof. Luiz Edson Fachin (Teoria Crítica do Direito Civil).

E fim de papo.


segunda-feira, setembro 17, 2007

Se essa rua fosse minha, se esse muro fosse meu...




Saiu no Caderno 2 do jornal “A Tarde” de Salvador em 15/09/2007, uma interessante discussão sobre um protesto dos grafiteiros contra o artista plástico Willyans Martins. O artista trabalhou em sua dissertação a “poética do deslocamento” que consiste em, segundo o artista , retirar as obras dos muros e deslocá-las para as galerias. Para executar a proposta, ele aplica uma resina diretamente nos muros grafitados, deslocando parte do trabalho para a galeria onde expõe. (veja as fotos acima. À esquerda, a obra completa. À direita,a mesma obra após a retirada )

Andy Warhol, na década de 70, já utilizava o conceito de “ready made”, ou seja, retirar elementos do cotidiano das pessoas e transportá-los para o campo das artes. Quem não lembra do urinol de Marcel Duchamp?

O protesto dos grafiteiros funda-se três idéias básicas: (I) que não há referência dos autores da obra quando exposta pelo artista na galeria, (II) que é retirada parte da obra , modificando sua essência e, (III) que a obra realizada pelos grafiteiros deve estar na rua, por fazer parte do espaço público.

A discussão ultrapassa a idéia do simples direitos de autor e transita na compreensão da extensão do publico e do privado.

A modernidade se construiu em dois pilares : o direito organizou tudo que havia no mundo entre público e privado, determinando e equacionando as coisas em bens apropriáveis e, conseqüentemente, neste caso, conferindo poder ao sujeito de expulsar a ingerência do outro. O público ficou sendo o “de todos”, mas com um único titular, o poder público, que é um sujeito que administra os bens de todos. Para circular tudo isso, inventou-se o contrato.

O outro pilar foi a economia com base no capital: ela deslocou o padrão universal de troca, para a moeda e para o trabalho, pois antes o homem trabalhava para si e para a comunidade e passou a trabalhar para o outro fazendo apenas pedaços das coisas e recebendo salário em troca.

Neste cenário moderno , o direito tratou a obra do artista meio aos frangalhos porque não cabe nessa lógica: seu trabalho, sua criação, não é apropriável, seu quadro sim. O suporte onde se realiza a obra é o que circula no mundo do capital, mas a criação está protegida integralmente. E como se protege? Colocando o nome (crédito), pedindo autorização ao artista, que pode ou não aceitar a exposição de sua obra.

Os grafiteiros alegam que sua obra só apresenta sentido se o suporte é a rua, onde o muro existe em sua função original. Eles querem dizer mais. O suporte do chamado artista de rua (incluindo aí grafiteiros, palhaços, mímicos, estátuas vivas, atores de teatro, etc) é o espaço. Este é revisitado e reconstruído a cada apresentação, e sua essência artística é a efemeridade do instante público. O espaço aqui ultrapassa ,em muito, o pequeno “espaço público” de que trata o direito em seu padrão baseado no capital. É o espaço cultural, onde o suporte é a forma de ocupação do mundo. O muro então se transforma em outro lugar, em uma grande tela, a rua é o palco do mímico e do palhaço. No entanto, o universo redutor do direito só pode considerá-lo através do conceito de bem cultural, com sua respectiva proteção estatal.

O dano poderia ter sido minimizado se o artista plástico tivesse tido o cuidado de perguntar aos seus colegas, também artistas plásticos (ainda que sem o diploma de mestre), se poderia realizar a exposição, que aí seria um conjunto de obras a partir de outras. Ainda assim perderia parte do seu sentido, porque o objetivo principal do grafitti, criado no interior do movimento hip-hop, é justamente ser colocado na rua e não em galerias. Por outro lado, o direito também precisa rever seus conceitos, considerando como espaços públicos não só aqueles cujo poder de intervenção seja do Estado, mas, sobretudo, aqueles que abrigam todas as formas do viver.
(quem quiser ver os trabalhos e o protesto dos grafiteiros, vá ao site

quarta-feira, setembro 05, 2007

Saúde!

Quando era criança, minha mãe via suas plantas amareladas e dizia que elas estavam doentes. Minhas bonecas ficavam doentes, meus pés ficavam doentes quando eu andava muito. Minha alma ficava doente quando eu ficava triste.

Povos antigos relacionavam seus mitos de criação aos sentimentos dos deuses e seus filhos, e a doença era explicada pela ausência de ligação entre o espírito e o corpo, porque ambos eram uma só coisa gerando um só resultado.

O conceito de saúde da OMS ("saúde é um estado de completo bem estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”), mostra que a saúde é um estado, uma maneira de estar no mundo, de poder atuar enquanto humano nas dimensões da sua subjetividade. Saúde é um conceito subjetivo, portanto cultural, mutável, instável, relacional. Por isso, a saúde não pode ser construída individualmente, ela é, essencialmente, coletiva. Passa pela forma de cuidar de si e dos outros. Um exemplo? A vacinação contra a paralisia infantil. De nada adianta meu filho estar vacinado se todas as crianças não forem também, porque ele terá sido vacinado mas não imunizado. A imunização é um conceito relacional. Uma população, um grupo, uma comunidade pode ser imunizada, não apenas um indivíduo.

A saúde passa a ser um direito exatamente quando ela se perde. Basta pensar que a própria OMS é um resultado do pós-guerra. A saúde passa a ser direito quando o Estado precisa intervir para garanti-la, e só se garante algo quando se está em vias de perder esse algo.

O direito passa a ser um limite, um mínimo, aquilo que resta, o que sobra para podermos sobreviver. Cada direito que nasce não é um ganho, é uma perda. É a constatação que se extinguiu e precisamos salvar o que resta.

O artigo 196 da Constituição prevê o direito à saúde que o Estado propõe ao cidadão: ser de todos indiscriminadamente, garantido por políticas públicas com ações de promoção, proteção e recuperação, visando a redução dos riscos das doenças. Esta percepção de saúde, como foi dito acima, não é suficiente porque é a tentativa de equiparar a saúde a um direito administrativo de organização da saúde. Visto assim, é um direito redutor e insuficiente inclusive do ponto de vista da OMS.

A saúde deve ser encarada de forma abrangente e profunda, conforme determinação, constitucional de direito social e de garantia da dignidade das pessoas, e o que o Estado deve garantir (além do que já garante) é a inserção de todos a uma vida digna, com boa alimentação, lazer, salários adequados, moradia e tranqüilidade econômica, encarando tudo isso como parte da saúde da população brasileira.

domingo, agosto 19, 2007

Incômodo pirata ( Brasil:uma cena)


Esta semana, vendo um telejornal, vi a formidável prisão – registrada ao vivo – de uma quadrilha de jovens hackers no Paraná. O noticiário dizia que “foram presos jovens que faziam pirataria”.

Estas palavras instalaram-se em minha cabeça como incômodas. Havia algo errado naquela frase, ainda imperceptível para mim. Passaram alguns dias e, lendo um pequeno livrinho de entrevistas com Milton Santos (Território e Sociedade, da editora Perseu Ramos) percebi onde estava o erro. “Pirataria” era a palavra errada. A denominação tradicional da mídia a quadrilhas que inserem e adquirem informação de computadores alheios sem permissão é “hackers” e não “piratas”. Por que então essa mudança?

Vivemos sob bombardeio incessante da indústria cultural nos mostrando o quanto somos foras-da-lei, ladrões, incentivadores de crianças para o mundo do crime pelo fato da maioria da população comprar CD’s de vídeo e de som nas ruas, com ambulantes. Isso é chamado de pirataria.

O nome tem origem nos piratas que interceptavam cargas nos mares do planeta. Estas pessoas estavam ou a serviço dos reis e rainhas aos quais deviam obediência , ou por iniciativa própria. Eram prática políticas e sociais da época, que aumentavam o risco do negócio dos mercadores, que tendo perdido parte ou toda a carga, não tinham a quem recorrer (ainda não haviam inventado as seguradoras).

As questões formuladas devem ser as seguintes:

1-A população brasileira é pobre e os preços praticados pela indústria cultural são extorsivos. E todos devem ter acesso à cultura.

2-Inúmeros cantores e compositores populares produzem, eles mesmos, seus CDs e inundam as esquinas das ruas como um pré-lançamento popular, o que significa que, juridicamente, nem todo CD taxado como pirata o é, porque contém a anuência dos compositores.

3-Incontestavelmente, a tecnologia venceu o modo de produção cultural baseada no monopólio e na acumulação privada de bens culturais, democratizando o acesso de forma irreversível. Se as indústrias culturais quiserem continuar ocupando o mercado, deve pensar alternativas de convivência com a nova realidade mundial que sejam mais inteligentes do que a imposição da lei, no melhor estilo totalitário.

4- O que estamos presenciando é um autêntico movimento popular de resistência, uma prática social, o nascimento de um costume, assim como foi o cheque pré-datado (que no início também foi criminalizado como estelionato, lembram?). A prática social não necessita de normas fixadas por nenhum órgão, elas simplesmente passam a existir, e não podem ser consideradas fora da lei porque a maioria da população a aceita, a quer e, se estiver em um regime democrático, posteriormente altera a lei .

5- No regime democrático, o povo institui seu modo de viver, e opta por suas leis, e não o contrário. Se a lei, que era socialmente válida, o deixa de ser, o que deve mudar é a lei e não a sociedade.

Diante disso, o apoio estatal e midiático a campanhas pensadas pelos mercadores (ou seja, os empresários atuais) como “todo brasileiro é ladrão porque compra CD na esquina”, além de não ter respaldo legal, é uma afronta ao povo. Lembra aquelas frases antigas “o cheiro do cavalo é melhor que o cheiro do povo”, “este país só tem carroças” e outras lamentáveis que fomos obrigados a suportar.

É necessário que tenhamos muita atenção, pois nem tudo que é legal é legítimo. Cada vez mais, a lei é utilizada para interesses particulares, perdendo a perspectiva democrática que é sua essência. Cabe a nós, cidadãos preocupados, percebermos isso.

terça-feira, julho 24, 2007

Pessoas confusas,direitos difusos ( Vôo JJ3054- uma cena)

O artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor diz que os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias, ou sob qualquer forma de empreendimento , são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quando essenciais, contínuos.

A rigor, o transporte aéreo de um país é um serviço público prestado indiretamente, ou seja, por outra pessoa jurídica pública ou privada que não o próprio Estado, mas que está submetida à mesma obrigatoriedade como se fosse uma empresa estatal. A responsabilidade da relação jurídica de consumo estabelecida é caracterizada pelo serviço público que se está oferecendo (pelo objeto), não por quem está oferecendo (sujeito prestador).

Isso quer dizer que o serviço de transporte aéreo brasileiro está regulado não só pelas determinações do CDC, mas sobretudo pelas determinações principiológicas constitucionais pertinentes ao artigo 37: os serviços públicos deve ser eficientes, adequados, seguros e contínuos.

Os serviços são considerados eficientes se, e somente se, cumpre a finalidade para o qual ele foi criado. Só é eficiente para a Constituição Federal aquilo que funciona.

As demais qualidades que o serviço público deve apresentar estão ligadas a esta primeira. Adequado se sua disponibilidade atende às necessidades da população, seguro se há inspeção dos itens mecânicos, elétricos, etc. e contínuos se não puderem ser satisfatoriamente substituídos pela mesma qualidade, quantidade e operacionalidade. Diante disso, os transportes aéreos brasileiros estão ferindo de morte a Constituição.

Mas não é só isso.

Vejo nos jornais indicações de como os passageiros feridos em seus direitos individuais devem resgatá-los através de indenização. No entanto, o que está em jogo é mais, muito mais que indenizações individuais, ou mesmo coletivas (entendendo coletivo de pessoas que viajam ou viajaram nesses vôos onde algo deu errado). A discussão gira em torno de um coletivo nacional, difuso, sem caras, sem nomes, sem digitais. São as pessoas que estão nas ruas , trabalhando e vêem um avião cair em suas cabeças. São as pessoas que vivem do turismo, e não falo só dos donos de pousadas, mas dos vendedores de praia, dos taxistas, enfim, de todos os brasileiros que vivem o medo de avião sem necessariamente jamais terem pisado dentro de um. São também os estrangeiros, os que cruzam os céus do país, todos esses detêm um direito maior que se chama direito difuso.

Essa categoria de direito não se circunscreve a um único titular, um “dono” de um direito individual, que tenta resgatar uma dignidade ou seu prejuízo. Os valores alcançados pelos direitos difusos são de todas as pessoas que pleiteiam e tutelam não só coisas que têm valor econômico, mas também esta universalidade passível de ser pedida e resguardada, coisas como cuidado e eficiência.

Talvez seja isso que o MP de São Paulo, sendo o fiscal do cumprimento da lei e advogando em nome da sociedade, pensou ao pedir o imediato fechamento de Congonhas. Uma medida bonita, mas de desespero, porque o problema não é meramente geográfico. É uma resolução coletiva de um país que cada vez mais se vê diante de sua imagem, e cada vez mais tem vergonha do que vê.

quarta-feira, junho 27, 2007

Cartórios, advogados e a Lei 11.441/07 ( parte II)


O post sobre a Lei 11.441/07 provocou muitos comentários. Todos foram unânimes em dizer que os cartórios realmente entravam o sistema de acesso à justiça, pois monopolizam o trâmite documental ,resultando transtornos tanto pelas altas taxas cobradas quanto pelo tempo para entrega de documentos. Mas se os cartórios são inoperantes porque eles ainda estão aí, fortes e truculentos?

A resposta talvez esteja na publicação no Diário da Justiça de 20/06/2007, do provimento n. 118/2007 que trata da aplicação da Lei 11.441/07 com relação à conduta dos advogados para exercerem seu papel no âmbito desta lei. Segundo denúncias encaminhadas a OAB Nacional, alguns advogados estão canalizando serviços escriturais para determinados cartórios, e estes, em contrapartida, estão indicando profissionais para a elaboração do procedimento de escritura pública para a realização de separações, divórcios, inventários e partilhas. A OAB escreveu um provimento extenso para regular o que já está regulado no código de ética, e considerou ser apenas uma “infração disciplinar” o ato de enganar os clientes.

Muitas coisas devem ser pensadas. Em primeiro lugar, a possibilidade de uma concessão pública estabelecer valores de mercado para seus serviços, que por sua vez são exigidos pelo Estado para efetivação de direitos, o que coloca o consumidor/cidadão em uma situação de absoluta ausência de alternativa. Em segundo lugar, essa necessidade imperiosa do advogado para estabelecimento dos acordos, quando na verdade poderia ser mediado por qualquer pessoa com bom senso e continuar sendo homologado pelo juiz, funcionário público que é (muito bem) pago para isso.

E terceiro lugar, quando se cria uma lei civil , voltada para um maior acesso da população aos direitos constitucionais, ela não pode ser pensada fora do universo do processo civil, dos procedimentos cartoriais e advocatícios, ou seja, da realidade onde ela será exercida. Não adianta falar que a lei é boa, mas não funciona por causa das pessoas que são más. Este argumento é inadmissível. É possível estabelecer sistemas jurídicos específicos para regular lei específica, com dispositivos de direito material, processual, penal e administrativo, que, juntos, possam resolver os problemas das pessoas comuns , relacionados com aquela matéria.

Eis a íntegra do texto do Provimento nº 118/07.
Dispõe sobre a aplicação da Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007, disciplinando as atividades profissionais dos advogados em escrituras públicas de inventários, partilhas, separações e divórcios.
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, no uso das atribuições que lhe são conferidas pelo art. 54, V, da Lei nº 8.906/94, tendo em vista as disposições da Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007, e considerando o decidido nos autos da Proposição nº 2007.31.00203-01, RESOLVE:
Art. 1º Nos termos do disposto na Lei nº 11.441, de 04.01.2007, é indispensável a intervenção de advogado nos casos de inventários, partilhas, separações e divórcios por meio de escritura pública, devendo constar do ato notarial o nome, o número de identidade e a assinatura dos profissionais.
§ 1º Para viabilizar o exercício profissional, prestando assessoria às partes, o advogado deve estar regulamente inscrito perante a Ordem dos Advogados do Brasil.
§ 2º Constitui infração disciplinar valer-se de agenciador de causas, mediante participação nos honorários a receber, angariar ou captar causas, com ou sem intervenção de terceiros, e assinar qualquer escrito para fim extrajudicial que não tenha feito, ou em que não tenha colaborado, sendo vedada a atuação de advogado que esteja direta ou indiretamente vinculado ao cartório respectivo, ou a serviço deste, e lícita a advocacia em causa própria.
Art. 2º Os Conselhos da OAB ou as Subseções poderão, de ofício ou por provocação de qualquer interessado, na forma do disposto no art. 50 da Lei nº 8.906, de 04.07.1994, requisitar cópia de documentos a qualquer tabelionato, com a finalidade de exercer as atividades de fiscalização do cumprimento deste Provimento.
Art. 3º As Seccionais e Subseções divulgarão a mudança do regime jurídico instituído pela lei citada, sublinhando a necessidade da assistência de advogado para a validade e eficácia do ato, podendo, para tanto, reivindicar às Corregedorias competentes que determinem a afixação, no interior dos Tabelionatos, de cartazes informativos sobre a assessoria que deve ser prestada por profissionais da advocacia, ficando proibida a indicação ou recomendação de nomes e a publicidade específica de advogados nos recintos dos serviços delegados.
Art. 4º Os Conselhos Seccionais deverão adaptar suas tabelas de honorários, imediatamente, prevendo as atividades extrajudiciais tratadas neste Provimento.
Art. 5º Os Conselhos Seccionais poderão realizar interlocuções com os Colégios Notariais, a fim de viabilizar, em conjunto, a divulgação do regime jurídico instituído pela lei citada.
Art. 6º Este Provimento entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 7 de maio de 2007.
Cezar Britto, presidente
Lúcio Flávio Joichi Sunakozawa, relator

domingo, maio 27, 2007

Lei 11441/2007: divórcio e separação no cartório


A Lei 11441/07 trata das separações e divórcios que podem ser feitos por via administrativa, ou seja, pelo cartório, sem passar pela homologação judicial. Os requisitos básicos para a escolha por esta via são:

1. o casal deve combinar antes sobre todos os detalhes da separação , não podem ter filhos menores de 18 anos ou incapazes ( que necessitem de tutela ainda que tenham alcançado a maioridade);

2. a escritura pública lavrada por tabelião de notas expressando a livre decisão do casal acerca do valor e do modo de pagamento dos alimentos que um dos cônjuges pagará ao outro,(ou a dispensa deste pagamento);

3. a descrição e a partilha dos bens adquiridos durante o casamento ;

4. Se o cônjuge que tiver adotado o sobrenome do outro , a decisão se irá mantê-lo ou não;

5. a observância do prazo de um ano contando a partir da celebração do casamento para a separação ou do prazo de dois anos de separação de fato para o divórcio direto;

6. assistência de advogado.

Esta lei foi pensada e pedida pela comunidade jurídica (e não pela população em geral) por questão de ordem meramente patrimonial: para os advogados, a vantagem é a redação de um contrato simples, cujo resultado demanda um tempo menor, o que significa pagamento de honorários mais rápido. Para os envolvidos, a velocidade mediante o alto pagamento, e para os cartórios, mais uma mercadoria a ser vendida.

Segundo pesquisas pessoais, poucos locais de prestação de advocacia popular têm utilizado a Lei 11441. O primeiro problema é a prova de insuficiência de recursos ( o velho atestado de pobreza) , normalmente reconhecida em juízo, encontra entraves nos cartórios.

O pagamento dos serviços representa outro problema , pois ainda que os advogados não sejam pagos diretamente pelos clientes, os cartórios o são, tornando impossível o acesso aos mais pobres. Além de tudo, poucas são as pessoas de baixa renda que se casam no papel e se divorciam ou separam diante da lei , sendo comum a união estável e a simples separação, na base do “cada um para seu lado”.

Com relação aos bens imóveis, a situação é agravada: se existem, não são registrados como propriedade . A lavratura da escritura para a separação acaba ficando vinculada ao serviço de escritura e registro do imóvel, ficando de fora a possibilidade de prova da posse, apenas reconhecida judicialmente.

Na advocacia popular as mediações e conciliações entre os envolvidos ainda representam as melhores práticas para a partilha dos bens , pagamento de alimentos e organização das visitas. Após tudo resolvido ( o que pode demorar dias ou meses) a petição é levada a juízo para homologação. Em alguns casos, isso não é necessário: a prática da negociação é suficiente para que o casal se torne comprometido com sua palavra escrita , não necessitando a interferência de terceiros. Isso é importante por significar uma emancipação enquanto sujeitos de suas próprias decisões.

A Lei 11441 tem grande chance de não “pegar” ou ser aplicada apenas para alguns , sem a imprescindível generalidade a que todas as leis devem estar conformadas conforme princípio democrático.

Apesar disso, talvez esta lei sirva para iniciar um debate importante no cenário jurídico brasileiro: repensar a concessão estatal aos cartórios, instituição colonial herdada das grandes oligarquias e que persistem até hoje gerando despesas e entraves para a utilização de diversos serviços para a população brasileira.


sexta-feira, maio 11, 2007

Oui, habemos money!


Está um verdadeiro samba do crioulo doido esse Projeto de Desenvolvimento da Educação (PDE). Com uma mão se procura nos bolsos do Estado o dinheiro para custear a necessária reforma do ensino médio e fundamental ( reforma não , implantação, porque estão destruídos...) e com a outra deixa escorrer milhões na quase anistia fiscal para as empresas privadas de ensino .

A art. 209 da Constituição deixa o ensino livre à iniciativa privada, sob condição de atendimento às normas gerais da educação nacional e ser autorizado e avaliado o seu funcionamento pelo poder público. O que se entende disso é que o ensino privado, ainda que esteja livre para negociar suas contas e mensalidades com base no mercado ,deve subordinação ao Estado no que diz respeito à qualidade a ser oferecida ao povo brasileiro. Isso quer dizer que apesar de poderem estabelecer seus estatutos internos, as escolas e faculdades deve mantê-los abertos e visíveis para o poder público. Isso nos permite afirmar que o ensino privado é uma concessão do Estado estabelecida mediante condições de funcionamento.

Estas condições também se referem ao processo didático-pedagógico , já que este é o mediador da implementação do ensino de qualidade, ou seja, a quantidade de alunos em sala de aula, o número de horas-aula dos professores e as aulas presenciais são situações já consagradas tecnicamente como elementos inafastáveis para a qualidade do ensino , inclusive o de graduação.
O caso das faculdades privadas é o mais escandaloso: sendo configuradas como empresa, elas devem cumprir os deveres de todos os cidadãos brasileiros: pagamento de impostos , respeito às leis trabalhistas, ao meio ambiente ( inclusive do trabalho) , certo? Errado!

O governo resolveu apoiar um pouco mais as universidades privadas inadimplentes com o fisco, ampliando o prazo para adimplemento em 10 ( dez) anos com juros de mãe pra filho. Além dos incentivos do Prouni e semelhantes , o que faz do ramo da educação um dos mais rentáveis e de menor risco .

Está ocorrendo uma inversão : nós não estamos concedendo um espaço para a educação privada , nós estamos financiando a empresa privada cujo objeto é a venda de um curso superior de qualidade duvidosa em detrimento da universidade pública! Como se isso não bastasse, não avaliamos adequadamente e sistematicamente o andamento do objeto do financiamento, ou seja, ninguém sabe como está sendo usado o dinheiro público. Basta caminhar no interior das salas de professores destas empresas de educação privada para perceber o abuso e a ausência de condições mínimas para o trabalho docente . Não estou falando de condições materiais porque a escola não é feita somente de quadro, computadores e laboratórios, ela ainda é o resultado do encontro entre professores respeitados como profissionais e alunos comprometidos com o aprendizado.

O PAC da educação superior começou mal para professores e alunos. Melhorar a vida dos investidores da educação não vai ajudar em nada a viabilizar um projeto sério de educação superior de qualidade para o povo brasileiro.

segunda-feira, abril 16, 2007

Chamem o ladrão!!

Sempre adorei os piratas. Me fantasiava no carnaval e me emocionava com as histórias de um homem com cara de mau e risada de Papai Noel ( hohoho) embotada de rum. O lado sombrio e os anti-heróis charmosos sempre empolgaram as platéias : do lobo mau ao Jaba, do Pingüim ao Darth Vaden, às vezes carregam mais um atributo: são lindos. Desde Butch Cassidy , os atores mais bonitos do cinema são escolhidos a dedo para representar o lado mau da história, como para nos alertar que as aparências enganam. O lado bom, representado por heróis arrumadinhos e com imenso sentimento público, ganhava no final, não sem antes existir a chance de um retorno mais arrepiante do perdedor.

Até mesmo os bicheiros eram diferentes. No Rio antigo, onde cheio de boa intenção o Barão de Drummond lançou o Jogo do Bicho para promover seu zoológico recém inaugurado, a contravenção convivia placidamente com os habitantes, quase como uma forma de manifestação popular que transformava sonhos com animais em palpites e, sobretudo, com a certeza inquestionável do pagamento no caso de se ser o ganhador. Valia o que estava escrito.

O mundo se tornou complexo, e complexa se tornou a manutenção da contravenção. Os anti-heróis dos subúrbios cariocas (quem não viu o Boca de Ouro do Nelson Rodrigues, veja por favor...) se tornaram poderosos integrantes do comércio internacional.

E os mocinhos?

Estão nas faculdades de Direito pagas pelos bandidos para se tornarem magistrados, procuradores e advogados. E se tornam excelentes profissionais – basta ouvir a entrevista do advogado do ( atenção!) Ministro do Superior Tribunal de Justiça acusado de prestar favor ao irmão concedendo liminares, para ver que ele aprendeu direitinho as aulas de direito constitucional: alega indignado, que o uso do bom nome do Ministro coloca em cheque o Estado Democrático de Direito!!! Como se ele fosse composto apenas do judiciário!

É necessário o enfrentamento da questão seriamente. Essas pessoas passam cinco anos com professores dentro de faculdades?Quais são elas? Fazem vestibulares? Prestam concursos públicos com seriedade? Quem está na banca desses concursos? Onde está o órgão de classe que supervisiona os profissionais? E os corregedores ?

O Estado Democrático de Direito nos custou anos de história, e apesar de muita coisa ruim, é o que temos até pensarmos em algo melhor. Para isso deveria servir os doutrinadores do país que, ao invés de se debruçarem sobre as questões públicas, ficam vendendo livros com discussões de compadrio. Visando a organização social e a publicidade da esfera pública que deveriam lecionar os professores das Universidades Públicas, funcionários do povo que são.

A Associação dos Magistrados Brasileiros em seu site, escreve nota pública de 10 ridículas linhas para defender a apuração dos fatos. Sim, isso é obvio, mas até o julgamento da quadrilha de toga , eles continuarão recebendo salário do Estado? Continuaremos bancando os advogados e o luxo seu e de sua família até o trânsito em julgado da sentença? Terão direito à sua gorda aposentadoria?

Por favor, respondam minhas perguntas não com a lei, que eu já conheço, mas com mesma vergonha que sinto hoje em portar um diploma de Direito.

sábado, abril 14, 2007

Por água abaixo

O plano de gestão do Aqüífero Guarani, a maior reserva de água subterrânea do mundo não foi pra frente. Os países diretamente envolvidos – Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – não conseguiram estabelecer uma normatização plausível para organizar a exploração sustentável do manancial. Enquanto isso, a OEA e o Banco Mundial, de olho no potencial econômico, já estão financiando sua proteção.

As legislações de cada país integrante versa de maneira diferente sobre as águas, e o Brasil, país sob o qual está 80% do Aqüífero, apresenta também internamente uma legislação confusa.

O Código Civil Brasileiro (art. 99,I) diz que rios e mares são bens públicos de uso comum do povo , o que significa que não se pode vender nem podem ser objetos de usucapião (ganho do direito de propriedade pelo decurso do tempo) .

A Constituição Federal (art.20,III) diz que os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio ou que banhem mais de um estado da federação, ou que sirvam de limites com outros países são bens da União, o que, de certa maneira, confirma o proposto no Código Civil: são do povo, geridos pela União, seu representante.

A grande confusão começa com o estabelecimento das competências. Competência é quem tem o direito constituído para regulamentar determinada questão.

O artigo 22,IV da Constituição diz que é competência privada da União legislar sobre águas (só a União pode legislar, mas também pode mandar o estado fazê-lo). O artigo 23,XI diz que a competência é comum da União, dos Estados, Territórios e dos Municípios na exploração de recursos hídricos (todos os entes federativos legislam juntos) e o artigo 24,VI e VII fala de concorrência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal sobre proteção do meio ambiente e do patrimônio paisagístico(ou seja, a União vai estabelecer normas gerais e os demais entes complementam).

A base desta confusão é que ninguém havia pensado muito seriamente em água no sentido de bem comum do povo brasileiro – porque sendo comum é de todos , e para o direito vigente , o que é de todos pertence ao Estado (que tradicionalmente é visto como ente representante da vontade geral). O problema é que a água do aquifero ultrapassa este sentido tão pequeno. Ela é de cada um dos nacionais ( brasileiros, argentinos, paraguaios e uruguaios), e ao mesmo tempo é de todos os povos do planeta Terra. A água quebra a idéia moderna de poder exclusivo e excludente sobre um bem, da soberania absoluta, o que mostra efeitos complicados para sistema jurídico atual.

O sistema jurídico clássico não comporta a idéia de gestão superposta com igual intensidade e legitimidade . A gestão da água e da natureza é para o mundo jurídico clássico o que gato de Schodinger representa para a física clássica – um paradoxo.

Um gato está fechado em uma câmara de aço, junto ao diabólico dispositivo seguinte (que deve assegurar-se contra uma interferência direta por parte do gato): num contador Geiger há um pedacinho de uma substância radioativa, tão pequeno, que talvez no transcurso de uma hora se desintegre um átomo, mas também poderia ocorrer com igual probabilidade que nenhum átomo se desintegrasse; se ocorre o primeiro, produz-se uma descarga no tubo e mediante um relê libera-se um martelo que rompe um frasquinho de ácido cianídrico. Se se deseja que o sistema completo funcione durante uma hora, diríamos que o gato viverá se nesse tempo não tenha desintegrado nenhum átomo. A primeira desintegração atômica o envenenará.

Nas nossas mentes está absolutamente claro que o gato deve estar vivo ou morto. Por outro lado, segundo as regras da mecânica quântica, o sistema total dentro da caixa se encontra numa superposição de dois estados um com o gato vivo e o outro com o gato morto. Mas qual sentido podemos dar a um gato vivo-morto?

O paradoxo da água e da natureza está na possibilidade de uma superposição jurídica cumulativa, não excludente, que nos coloca gestores coletivos de uma natureza constantemente em suspensão . Para ela e para as águas não existem competências, existe apenas seu curso , e as pessoas são os observadores/gestores que testemunharão a possibilidade de vida E morte, sempre e ao mesmo tempo, na constância do seu uso .

Integrar políticas públicas não vai melhorar o problema, apenas vai postergá-lo com infindáveis batalhas jurídicas nacionais e internacionais, até o momento que possamos construir um sistema jurídico que ultrapasse o legado moderno e rompa definitivamente com a estrutura proprietária individual, pelo menos na gestão dos bens socioambientais.



quarta-feira, março 28, 2007

Verdade sobre as nações indígenas

Se alguém deve reclamar de ameaça à soberania somos nós, que, hoje, temos apenas 13% de um território que já foi 100% indígena poderíamos aqui elencar uma série de dados reais sobre a Amazônia, sobre os povos indígenas e sobre os ganhos que têm a sociedade e o Estado brasileiro por reconhecer seu multiculturalismo. Vamos deixar isso para que Helio Jaguaribe o faça. Ou, então, continue publicando esses artigos burlescos e oportunistas ("Tendências/Debates", 19/ 2) que só servem de pretexto para denegrir a imagem dos povos indígenas. Primeiro, a Amazônia nunca esteve abandonada, não pelos povos indígenas, que desde sempre estiveram e estão lá, guardando as fronteiras e garantindo a integridade territorial do nosso país. Perguntamo-nos: Quem é Helio Jaguaribe para falar de nacionalismo e de perda da Amazônia, para nos acusar de formar nações com a ajuda dos americanos para reivindicarmos nossa autonomia etc.? Para informação de Jaguaribe e de mais algum nacionalista de plantão que busca culpados para a suposta "perda da Amazônia", não estamos construindo nações -nós somos nações indígenas! Não com a ajuda dos americanos, mas porque os cerca de 480 mil índios brasileiríssimos são sobreviventes de uma história de extermínio, de massacres, de chacinas e de toda sorte de discriminação e preconceito de que um povo pode ser vítima, mas que, teimosamente, sobrevive num país que, em pleno século 21, ainda abriga pensamentos e conceitos tão retrógrados sobre o direito à diferença, explicitando a intolerância que sempre caracterizou as relações de uma minoria deste país que detém o poder econômico e político em detrimento de uma maioria de diferentes. Preconceito esse que nos faz sofrer cotidianamente todos os tipos de violência, que nos faz diminuídos diante de tanta impunidade, que faz nosso sangue espesso em nossas veias finas que já não suportam tanta revolta. Somos apenas 480 mil graças a uma errônea e equivocada política de extermínio adotada durante séculos e que matou milhões em só 500 anos. Somos nações, somos povos, sim. Falamos mais de 180 línguas diferentes. É mais do que justo que o Estado que nos submeteu aos horrores do extermínio assuma a responsabilidade de proteger o que ainda resta de nossas culturas, crenças e tradições e os parcos territórios dos quais usufruímos. Não sabemos a que "americanos" se refere Jaguaribe. Se for aos estadunidenses, são do país mais resistente ao reconhecimento dos direitos humanos coletivos dos povos indígenas nos fóruns internacionais, como a ONU e a Organização dos Estados Americanos, que estão discutindo e formulando as declarações internacionais sobre os direitos dos povos indígenas. Nesses fóruns, como líderes indígenas, participamos em condições de eqüidade e igualdade com o Estado brasileiro, representado por seu corpo diplomático, os conceitos de soberania, integridade territorial, direito à livre determinação dos povos indígenas, direitos e soberania sobre suas terras, territórios e recursos naturais, entre outros. Discutimos tais direitos fundamentais para garantir um futuro digno aos povos indígenas e estabelecer, entre o Estado brasileiro e os povos indígenas, novas relações que tenham como base o respeito mútuo. Se alguém deve reclamar da ameaça à soberania somos nós, que, hoje, temos apenas 13% de um território que já foi 100% indígena e tivemos roubados e saqueados pelo menos 87% do nosso Brasil indígena. Somos os responsáveis por ainda haver grandes riquezas nas terras que nos empresta o Estado brasileiro porque respeitamos, preservamos e cuidamos delas. Jamais permitiremos nenhum tipo de intervenção estrangeira nos territórios que ocupamos. Esses territórios são as nossas casas e a única garantia de vida que resta aos nossos filhos, de quem, ao entardecer de cada dia, olhamos bem no fundo dos olhos e damos a esperança de ver no dia seguinte seus territórios desocupados e livres de invasões, para o exercício pleno e efetivo do seu direito humano à vida. Um artigo como o de Helio Jaguaribe é uma afronta às nossas árduas lutas pela conquista, e não simples "concessão", de cada palmo dos nossos territórios tradicionais. É uma afronta aos nossos povos e à memória dos nossos grandes líderes que foram assassinados pelo Brasil afora em nome da liberdade de viver como povos diferentes e dignos.

Este texto foi publicado em " Tendências e Debates" da Folha de São Paulo de 28/3/2007.

AZELENE KAINGÁNG, socióloga, e UBIRATAN WAPICHANA, advogado, são técnicos do Warã Instituto Indígena Brasileiro.

E traduzem a minha posição sobre o assunto.

domingo, março 25, 2007

Arapuca de Apucarana

Esta semana o prefeito de Apucarana, no Paraná, mandou expulsar os mendigos da cidade sob o singelo argumento que como eles não moravam lá, então deveriam voltar para suas casas nas respectivas cidades de origem.

Sem se dar conta do fato que, se mendigam, provavelmente não terão casa pra voltarem e ignorando o direito mais conhecido e exercido de todos - o de ir e vir - usou o aparato público para resolver o problema: pôs a polícia nas ruas, e, em uma espetacular ação conjunta com a assistência social, prendeu e fichou todos os mendigos por vadiagem, colocou-os no ônibus e pronto! Estava resolvido o problema. O que os olhos não vêem, o coração não sente e o olfato não cheira....

Este ato iluminista, simplista e supostamente racional me fez pensar sobre o papel desta coisa chamada soberania, tão próxima e tão inquietante.

A idéia de soberania foi apresentada para um tempo e com finalidade certos: acabar as práticas medievais de organização social baseada na multiplicidade e nos acordos políticos com os monarcas e os senhores de feudos. O argumento era que a diversidade acabava por provocar guerras e disputas de poder mas na verdade o que se queria era erigir uma comunidade européia mais homogênea em termos legais para melhoria do comércio.

Na Idade Média o poder soberano era conferido e legitimado ao rei pela sua comunidade, se originava nela. Nesta nova idéia, diria quem poderia deter o poder soberano? E quais seriam os limites do poder conferido?

Depois de muito pensar, um homem chamado Bodin, no século XVI, resolveu o problema com a seguinte proposta: o poder a ser conferido deveria ser absoluto, ou seja, em uma comunidade ordenada, o poder não poderia ser fruto de acordos, nem ser compartilhado. Além disso, deveria apresentar um “núcleo duro” - chamado assim por ser imutável - que seriam os poderes de dar e anular leis, de declarar guerra e de firmar a paz, de decidir as controvérsias entre os súditos, de nomear os magistrados e o poder de impor tributos. Nasce então a idéia central da soberania, que, de certa forma, é a mesma até hoje.

No entanto, a soberania foi contraditada posteriormente com as Constituições, que foram modificando paulatinamente sua prática. Foram sendo conquistados direitos fundamentais da pessoa humana e outras formas para se constituir o poder central e utilizá-los a partir da democracia. A soberania hoje é um poder que emana do povo, só podendo ser utilizada em seu nome. Novamente se colocam as mesmas questões do século XVI. Quem pode exercer a soberania como representante da vontade do povo? E quais são os limites dos poderes conferidos?

Como exercer a soberania sem a volta da antiga prática absolutista como lamentavelmente vimos acontecer em Apucarana? Como dar voz aos mendigos da cidade, posto que são pessoas com direitos garantidos pela constituição, ou, em última análise, garantidos por todos nós brasileiros?

A resposta talvez seja colocar diuturnamente a soberania do povo enquanto pluralidade de valores soberanos protegidos nos enunciados constitucionais, entendendo que a Constituição está vinculada como mediadora e não criadora de direitos, afastando-se, portanto, da promessa de oferecer respostas fáceis, rápidas e predeterminadas.

Talvez então a esfera pública ocupe o lugar da verdadeira soberania.

Ainda que no caminho desta possibilidade nos deparemos com situações extremas de constante desequilíbrio resultantes do processo democrático aberto, plural e indeterminado, aonde nem sempre chegaremos a uma resposta satisfatória,somente a algumas possíveis, mas continuaremos buscando sempre levar em conta a estrutura social e histórica das pessoas reais, sujeitos de uma titularidade complexa e plurissubjetiva.

No limite, esta razão deve ir além da pura parcialidade da decisão, da adoção de uma regra particular para resolver questões de razão pública. E o povo deste país, eu, você e os mendigos de Apucarana, devemos lutar para que um dia a comunidade brasileira possa colocar constante e permanentemente em discussão os próprios direitos soberanos já estabelecidos.

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Infância perdida


Quando eu era pequena morava no Rio, andava nas ruas, ia de ônibus para a escola. Com uns 12 anos me sentia segura, não por não haver violência, havia sim e muita. Sentia-me segura porque as pessoas me protegiam. O motorista do ônibus não me deixava saltar antes que tivesse completamente parado. O trocador me dava o troco certo. As senhoras e senhores do ônibus não me deixavam cair, me davam o lugar, me ofereciam ajuda. Os carros paravam para eu passar. Ser criança era seguro porque havia um sentimento comum de proteção a todas as crianças, sem exceção. Ai de quem batesse em seu filho na rua: um safanão ou um xingamento era suficiente para que qualquer um chamasse atenção daquele pai ou mãe.

Na sociedade onde vivi todos eram responsáveis pelas crianças. Existia a preocupação, ainda que inconsciente, que elas eram importantes para a manutenção positiva da sociedade, de um futuro melhor, garantidoras de uma herança social.

O que vejo agora? O terror se espalhou e as crianças foram deixadas por si. Todas as crianças. Ninguém mais se importa com elas, coletivamente falando. Os carros não param mais, não lhe dão lugar na fila, poupam-lhe sorrisos. Ficamos todos endurecidos. Tentamos proteger apenas nossos filhos e filhas. Sofremos por imaginarmos que poderia ser eu ou você no lugar daquela mãe sofredora – e o sentimento de impotência cresce porque simplesmente não podemos trancá-los mais. Então, qualquer ato violento contra crianças ou praticado por elas se torna insuportavelmente cruel.

Precisamos pensar seriamente partindo da seguinte premissa: não é a lei ou as coisas que nos trazem segurança, é a relação estabelecida entre as pessoas que nos garantem a segurança necessária para a sobrevivência social.

Portanto, ainda que muito se fale sobre a morte terrível do menino João e tantos outros meninos e meninas inacreditavelmente mortos, ainda que fiquemos estupefatos mediante a barbaridade da moça jovem e rica que matou os pais dormindo (colocados portanto na mesma posição indefensável como se crianças fossem), é fundamental refletir calmamente. Isso porque não só de violência urbana vive este pobre país. Na mesma página de Internet, no dia da morte de João, logo abaixo onde se lia a noticia, havia outra não menos terrível sobre a morte de 17 indiozinhos. Morreram de fome. Ninguém foi preso. Não há culpados, maiores ou menores, para este crime tão cruel.

Voltou à baila o assunto de diminuição da responsabilidade penal. Diluído em opiniões e “achismos” irresponsáveis, muitas pessoas disseram que crianças devem ser completamente responsáveis por seus atos, devem responder pelos crimes e contravenções como se adultos fossem. Devem ser tratados de igual para igual no todo social. E não adianta atenuar dizendo “não são todas as crianças...” Errado. São todas elas. Ou também virá a proposta de eliminação da igualdade entre todos os cidadãos? Qual seria o limite final?

O limite final desta discussão é o fim da proteção das crianças e adolescentes.

Diz o artigo 6 do Estatuto da Criança e Adolescente. “na interpretação desta lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.”

Esta lei espetacular e tecnicamente perfeita mostra, antes de tudo, que a sociedade deve optar como quer viver. Quais os fins sociais de uma lei que recairá – é bom que se diga e repita - sobre todas as crianças: a minha, a sua, a pobre e a rica, as índias, brancas e negras, de todo o Brasil. Qual o tratamento que deveremos oferecer às nossas pessoas – em desenvolvimento ou já desenvolvidas. A pergunta é: continuaremos apostando no futuro? Este é o debate real.

É necessário que as pessoas vejam claramente a intervenção na lei como algo que vai afligi-las também, por isso a lei é geral (para todos) e abstrata (para todas as situações e não somente uma situação específica). Discutir leis não é tão fácil como discutir uma tática de futebol. Não se chega a uma mudança social pela lei, é exatamente o contrário. A lei é o resultado consciente, é a constatação dramática e definitiva, que algum assunto é fundamental para a melhoria da vida de todas as pessoas que vivem juntas naquela sociedade, por isso são elaboradas após a lenta e delicada constatação que a sociedade mudou, após grandes discussões do seu impacto, inclusive sobre os gastos com a política pública para efetivar sua implementação.

O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma lei feita por e para uma sociedade que deseja que sua criança tenha a chance de ser um cidadão, ainda que tenha errado. É uma lei pensada para a transformação social pela proteção da infância. Acreditamos nisso. É para isso que contribuímos com campanhas em prol das crianças, famosos criam instituições para incentivar a educação e os desportos, importante causas sociais que só podem existir pela essência edificada no Estatuto da Criança e do Adolescente. É uma aposta social. O que devemos pensar então é se queremos continuar neste jogo ou não.

Se não quisermos, se passamos a achar que a proteção às crianças do Brasil não é suficiente e determinante para a melhoria do país, então, para termos um mínimo de coerência, deveremos cancelar todos os subsídios estatais aos esportes, a cultura, ao lazer, às artes e a educação em geral. Retirarem indiretamente da Constituição a obrigatoriedade estatal de formação do cidadão. Desta forma a sociedade estará dizendo e assumindo : “não acreditamos mais nas crianças, em novas chances.” Então será um vale tudo e cada um por si .

Não vamos proteger mais nossas crianças justamente retirando-lhes a proteção legal. É incoerente, é retrógrado, é errado. O dado cronológico é apenas um dado. Diminuir, aumentar ou manter o limite não altera substancialmente o fato que sempre haverá um criminoso mais jovem e mais jovem e mais jovem.... e o que faremos? Vamos criminalizar crianças de 5 anos que matam outras com armas deixadas por seus pais a seu alcance?

A grande imprensa fala de ausência de punição e por isso a necessidade de alterar o Estatuto. Essa lógica não está correta. O poder legislativo, depois de debates com a sociedade civil organizada elaborou o Estatuto da Criança e do Adolescente. O Judiciário faz o que está escrito nele e cabe ao Executivo municipal, Estadual e Federal traçar políticas públicas para materializar o que está escrito. Portanto, fazer outra lei não vai mudar o quadro da criminalidade que faz parte, inclusive, da área da sociologia criminal e não do Direito Penal.

Todos nós temos o direito à garantia de nossas vidas. João, os indiozinhos e os menores infratores também merecem, igualmente, a defesa de seus interesses e de sua vida. A diferença é que, por serem crianças, a sociedade lhes forneceu uma tutela a mais. Não podemos permitir que isso deixe de acontecer.







terça-feira, dezembro 26, 2006

Metrô rosinha

A lei 4.733 de 23/03/2006, editada no Rio de Janeiro confere um direito exclusivo às mulheres: andar de metrô ou trem nos horários de pico – determinado em lei como sendo de 6:00 às 9:00 horas, e das 17:00 às 20:00 horas, em vagões exclusivamente femininos. Meu irmão me perguntou: isso é discriminatório?

As leis devem ser, por princípio, para todos, sem exceções. E é uma lei, a Constituição Federal, que nos informa isso. No entanto, justamente para alcançar a igualdade real, às vezes torna-se necessário que a lei também distinga alguns grupos de sujeitos, reconhecendo que, na prática social, eles não conseguem por si só alcançarem a igualdade. Eles precisam de um “calço legal”, que são criados para que estes grupos possam relacionar-se em pé de igualdade com toda a sociedade.

A estes grupos de sujeitos são reconhecidas proteções especiais, direitos permanentes ou temporários, que deverão ser respeitados enquanto o sujeito estiver na situação que a lei descreve.

Muitos são os casos: o estatuto da criança e do adolescente e o estatuto do idoso reconhecem proteção a sujeitos que estejam em determinadas faixas etárias; gestantes e mulheres que amamentam, pessoas com moléstias consideradas graves (como câncer e AIDS), trabalhadores acidentados ou simplesmente doentes, consumidores, homens com filhos recém nascidos. Realidades sociais que podemos estar ocupando por determinados momentos ou permanentemente, nos colocando em posição de alguma desigualdade ou de desvantagem tal, que a sociedade fornece para estas situações uma lei protetiva.

Estas leis não apresentam caráter discriminatório por duas razões fundamentais: primeiro, são frutos de um consenso social que reconhece a existência de diferenças entre os cidadãos. Apresentam caráter de proteção a uma possível desigualdade, e que, em algum momento de nossa vida social podemos – ainda que não queiramos - figurar como sujeitos destes grupos. A segunda razão decorrente da primeira, é que as leis protetivas têm um caráter de generalidade, continuam sendo para todas as pessoas que estejam inseridas naquele grupo de sujeitos. Por exemplo: todos os idosos – não apenas os que moram no Rio, ou que andam de táxi, ou que são ricos. TODOS estão tutelados pela lei dos idosos, bastando que atinjam a idade por ela determinada. Assim acontece com todas as crianças, todos os adolescentes, todos os doentes, todas as gestantes. Não confere privilégios, mas reconhece direitos a grupos (sociais) de sujeitos hipossuficientes, ou seja, nas situações onde todos os pertencentes àquele grupo necessitam de auxílio (o calço) legal para que restabeleçam a condição de igualdade constitucional.

Voltando à pergunta de meu irmão, existe nesta lei alguma discriminação?

1-Qual é o grupo de sujeitos a quem a lei 4.733 alcança?
As mulheres do Rio de Janeiro (a lei é estadual) que andam de transporte ferroviário e metroviário. Não configura, pois, generalidade dos sujeitos a serem protegidos. O que existe nas mulheres cariocas que utilizam estes transportes que as diferencia das mulheres cariocas que utilizam táxi ou ônibus?

2- Qual a hipossuficiência que aparece nos vagões do estado? Onde está a desigualdade substancial tão importante a ponto de criar uma lei especial ?

Parece que o estado está querendo defender as mulheres que andam de trem e metrô partindo da premissa que elas estão à mercê de práticas de assédio masculinas. Se for isso, ele dispõe do poder de polícia e a lei dispõe de vários tipos penais para efetuar o controle social. Sem contar com as medidas sócio-educativas: câmeras, polícia para flagrar e educação básica costumam dar certo nestes casos.

A lei 4.733 não parece ter sido criada por razões de ordem jurídica. É discriminatória porque não somente as mulheres carecem de proteção para andarem de metrô ou de trem no Rio de janeiro. Está na contramão da história porque retoma uma situação há muito repudiada, uma forma de apartar parte da população por medo da outra parte, sem nenhum grau de razoabilidade nem legal nem social.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Para dizer que não falei da Gol


No começo era contra a Gol, depois passou para a empresa americana, depois para os pilotos da Gol, depois, para os da empresa americana. Depois, foi falha do transponder, depois, dos controladores, depois dos radares da Infraero. Eu pergunto: qual a causa real desta aparente confusão?

Convido os leitores a estudar um pouco de responsabilidade civil e tentar entender este conflito.

Responsabilidade é uma atitude que todas as pessoas devem apresentar e que se resume em assumir as conseqüências de seus atos ou omissões perante a sociedade, porque existe um dever de todos em não infringir danos a pessoas ou coisas.

A responsabilidade civil impõe uma indenização para tentar reparar o dano causado, caso não possa recuperar a coisa que sofreu o dano.

A estrutura da responsabilidade contém três elementos: o ato (ação ou omissão) do sujeito, o dano e o nexo de causalidade. O ato deve partir sempre de uma pessoa natural, executado com discernimento, e, como normalmente ninguém sai por aí causando dano a tudo e a todos, o direito supõe que, ao fazê-lo, seja por imprudência, negligência ou imperícia. Chamamos esse conjunto de elementos de “culpa”, causador da responsabilidade subjetiva, porque é cometido por um sujeito.

Às vezes o sujeito que executou o ato está sob comando de outro (um empregado de uma empresa). Como a empresa jamais pode responder por negligência, imprudência ou imperícia, por serem atributos somente de atos humanos, ela responde por ter escolhido mal seu funcionário, o que configura um exemplo de responsabilidade “in eligendo” .

No entanto, existem situações nas quais a natureza do objeto da empresa tem grande risco de produzir danos, ainda que se tenha muito cuidado. Nestes casos, a empresa responde diretamente – objetivamente - pelo risco já presumido, bastando que se prove o nexo de causalidade e o dano. É a obrigação de segurança que toda empresa deve apresentar e algumas devem ter mais um pouco pelo enorme risco social que representa seu objeto.

O dano ou prejuízo deve ser provado e não necessariamente deve ser uma coisa ruim. Por exemplo: se uma pessoa fizer um outdoor dizendo o quanto sou maravilhosa sob minha foto, isso pode ser considerado um evento danoso, por interferir em minha vida pessoal. E, por fim, o nexo causal é o seguinte: deve-se provar que aquele ato do sujeito, e somente ele, provocou aquele dano. Um foi causa do outro.

Assim, se um carro bate em outro, o motorista que provocou o acidente é responsável e quem sofreu o dano só tem um caminho: acioná-lo por culpa. Se o carro que colidiu for de uma empresa, quem sofreu o dano tem dois caminhos: acionar a empresa por culpa in eligendo ou o motorista por culpa. Como normalmente a empresa tem mais patrimônio, é ela a escolhida. Ela tem então ação regressiva contra o motorista, ou seja, pode cobrar dele posteriormente.

E se um avião de uma empresa abalroa um outro avião de outra empresa? A mesma coisa acontece, com um agravante: o transporte de passageiros é uma atividade de risco, sendo portanto de responsabilidade objetiva da empresa. É tão importante esta responsabilidade que ela não pode ser afastada por fato de terceiro, ou seja, ainda que uma outra pessoa (jurídica ou natural) tenha produzido uma falha mecânica AINDA ASSIM NÃO SE AFASTA A RESPONSABILIDADE DA EMPRESA TRANSPORTADORA. É o que diz o artigo 735 do Código Civil Brasileiro: “a responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva”.

Então é muito simples.

1- A empresa transportadora cujo avião colidiu com o avião da Gol deve ser acionada por ela pelo prejuízo material sofrido.
2- As famílias devem acionar a Gol por quebra de confiança porque contrato era de fim, ou seja, ela deveria ter levado seus passageiros com segurança até o destino e não o fez. Cabe, lógico, os danos morais de cada passageiro.

Este é o caminho processualmente mais rápido porque, como foi dito, nada retira a responsabilidade da empresa transportadora! Nem transponders, nem controladores, nem radares, nada! Ela é objetiva, ou seja, segurança presumida pela lei. Se a Gol quiser discutir depois, entrar com ação regressiva contra quem quiser, que faça, mas os passageiros nada têm a ver com isso!

E fica a pergunta: qual o real motivo dessa aparente confusão?

domingo, dezembro 03, 2006

HIV: entre nós e nãos

Em muitos momentos da história do mundo os homens sofreram com a presença das doenças que representavam o motivo de afastamento de suas famílias, tirando-lhes o sustento, causando dor e angústia. De certa maneira, as doenças incentivaram os homens a partirem em busca de grandes descobertas, abrindo caminhos através da superação de seus próprios limites, permitindo a reavaliação de tratamentos e métodos e, sobretudo, modificando a percepção em torno do seu significado social.

Posturas diversas foram tomadas desde a constatação da epidemia de HIV/AIDS não só no âmbito da saúde pública e farmacologia como também na reorganização do universo social e da informação de massa. O impacto da doença fez surgir uma gama de sentimentos, variando entre a indignação, indulgência e repulsa,o que fez criar ao longo do tempo, reflexos no mundo jurídico.

Estes reflexos se mostram a cada dia, nas inúmeras situações que a doença cria , gerando um núcleo essencial de novos direitos nas diversas instâncias do viver onde está o sujeito soropositivo. Isso acontece porque ao se ver compelido a percorrer uma nova trilha de ações em busca da tutela oferecida pelo Estado ou por particulares, a pessoa se vê perdida em um emaranhado de nós e nãos, que a conduzem ao desânimo e desespero .

Esses novos direitos estão ligados à personalidade do sujeito , e têm o condão de trazer à tona não somente a tutela referente ao afastamento das atividades produtivas - já garantida pelo direito previdenciário e do trabalho - mas sobretudo nas situações cotidianas de exclusão, que passam a ser uma perversa rotina na vida dos portadores de HIV/AIDS.

Um direito arcaico, unidimensional e excludente gera problemas quando não existe previsão legal imediata e dificulta em muito aquelas que, apesar de estarem amparadas pela lei, são interpretadas restritivamente, já que parte da premissa de que o sujeito doente deve ser afastado do convívio ao invés de vê-lo pleno de direitos como qualquer outra pessoa.

O grupo portador de HIV/AIDS luta pelo direito à convivência pacífica, ao trabalho e à vida, dignidades conferidas a todos , sem que se necessite assumir defesas em torno de preconceitos de toda ordem. Quer conviver em paz com a sua situação de portador de um vírus sem que precise falar todos os dias sobre a ausência de cura ou o medo da morte .

O direito deve ser chamado a cada remédio não entregue, a cada recusa de acesso ao especialista, a cada espera desmotivada nas salas que antecedem o atendimento . E deve ir além : para o jurista, dialogar com a realidade é oferecer ao soropositivo a possibilidade de fazê-lo reassumir atitudes de compreensão da dinâmica social de sua doença e instrumentalizá-lo para as várias lutas individuais e coletivas que continuarão inexoravelmente acontecendo.