domingo, março 25, 2007

Arapuca de Apucarana

Esta semana o prefeito de Apucarana, no Paraná, mandou expulsar os mendigos da cidade sob o singelo argumento que como eles não moravam lá, então deveriam voltar para suas casas nas respectivas cidades de origem.

Sem se dar conta do fato que, se mendigam, provavelmente não terão casa pra voltarem e ignorando o direito mais conhecido e exercido de todos - o de ir e vir - usou o aparato público para resolver o problema: pôs a polícia nas ruas, e, em uma espetacular ação conjunta com a assistência social, prendeu e fichou todos os mendigos por vadiagem, colocou-os no ônibus e pronto! Estava resolvido o problema. O que os olhos não vêem, o coração não sente e o olfato não cheira....

Este ato iluminista, simplista e supostamente racional me fez pensar sobre o papel desta coisa chamada soberania, tão próxima e tão inquietante.

A idéia de soberania foi apresentada para um tempo e com finalidade certos: acabar as práticas medievais de organização social baseada na multiplicidade e nos acordos políticos com os monarcas e os senhores de feudos. O argumento era que a diversidade acabava por provocar guerras e disputas de poder mas na verdade o que se queria era erigir uma comunidade européia mais homogênea em termos legais para melhoria do comércio.

Na Idade Média o poder soberano era conferido e legitimado ao rei pela sua comunidade, se originava nela. Nesta nova idéia, diria quem poderia deter o poder soberano? E quais seriam os limites do poder conferido?

Depois de muito pensar, um homem chamado Bodin, no século XVI, resolveu o problema com a seguinte proposta: o poder a ser conferido deveria ser absoluto, ou seja, em uma comunidade ordenada, o poder não poderia ser fruto de acordos, nem ser compartilhado. Além disso, deveria apresentar um “núcleo duro” - chamado assim por ser imutável - que seriam os poderes de dar e anular leis, de declarar guerra e de firmar a paz, de decidir as controvérsias entre os súditos, de nomear os magistrados e o poder de impor tributos. Nasce então a idéia central da soberania, que, de certa forma, é a mesma até hoje.

No entanto, a soberania foi contraditada posteriormente com as Constituições, que foram modificando paulatinamente sua prática. Foram sendo conquistados direitos fundamentais da pessoa humana e outras formas para se constituir o poder central e utilizá-los a partir da democracia. A soberania hoje é um poder que emana do povo, só podendo ser utilizada em seu nome. Novamente se colocam as mesmas questões do século XVI. Quem pode exercer a soberania como representante da vontade do povo? E quais são os limites dos poderes conferidos?

Como exercer a soberania sem a volta da antiga prática absolutista como lamentavelmente vimos acontecer em Apucarana? Como dar voz aos mendigos da cidade, posto que são pessoas com direitos garantidos pela constituição, ou, em última análise, garantidos por todos nós brasileiros?

A resposta talvez seja colocar diuturnamente a soberania do povo enquanto pluralidade de valores soberanos protegidos nos enunciados constitucionais, entendendo que a Constituição está vinculada como mediadora e não criadora de direitos, afastando-se, portanto, da promessa de oferecer respostas fáceis, rápidas e predeterminadas.

Talvez então a esfera pública ocupe o lugar da verdadeira soberania.

Ainda que no caminho desta possibilidade nos deparemos com situações extremas de constante desequilíbrio resultantes do processo democrático aberto, plural e indeterminado, aonde nem sempre chegaremos a uma resposta satisfatória,somente a algumas possíveis, mas continuaremos buscando sempre levar em conta a estrutura social e histórica das pessoas reais, sujeitos de uma titularidade complexa e plurissubjetiva.

No limite, esta razão deve ir além da pura parcialidade da decisão, da adoção de uma regra particular para resolver questões de razão pública. E o povo deste país, eu, você e os mendigos de Apucarana, devemos lutar para que um dia a comunidade brasileira possa colocar constante e permanentemente em discussão os próprios direitos soberanos já estabelecidos.

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