sábado, abril 14, 2007

Por água abaixo

O plano de gestão do Aqüífero Guarani, a maior reserva de água subterrânea do mundo não foi pra frente. Os países diretamente envolvidos – Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – não conseguiram estabelecer uma normatização plausível para organizar a exploração sustentável do manancial. Enquanto isso, a OEA e o Banco Mundial, de olho no potencial econômico, já estão financiando sua proteção.

As legislações de cada país integrante versa de maneira diferente sobre as águas, e o Brasil, país sob o qual está 80% do Aqüífero, apresenta também internamente uma legislação confusa.

O Código Civil Brasileiro (art. 99,I) diz que rios e mares são bens públicos de uso comum do povo , o que significa que não se pode vender nem podem ser objetos de usucapião (ganho do direito de propriedade pelo decurso do tempo) .

A Constituição Federal (art.20,III) diz que os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio ou que banhem mais de um estado da federação, ou que sirvam de limites com outros países são bens da União, o que, de certa maneira, confirma o proposto no Código Civil: são do povo, geridos pela União, seu representante.

A grande confusão começa com o estabelecimento das competências. Competência é quem tem o direito constituído para regulamentar determinada questão.

O artigo 22,IV da Constituição diz que é competência privada da União legislar sobre águas (só a União pode legislar, mas também pode mandar o estado fazê-lo). O artigo 23,XI diz que a competência é comum da União, dos Estados, Territórios e dos Municípios na exploração de recursos hídricos (todos os entes federativos legislam juntos) e o artigo 24,VI e VII fala de concorrência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal sobre proteção do meio ambiente e do patrimônio paisagístico(ou seja, a União vai estabelecer normas gerais e os demais entes complementam).

A base desta confusão é que ninguém havia pensado muito seriamente em água no sentido de bem comum do povo brasileiro – porque sendo comum é de todos , e para o direito vigente , o que é de todos pertence ao Estado (que tradicionalmente é visto como ente representante da vontade geral). O problema é que a água do aquifero ultrapassa este sentido tão pequeno. Ela é de cada um dos nacionais ( brasileiros, argentinos, paraguaios e uruguaios), e ao mesmo tempo é de todos os povos do planeta Terra. A água quebra a idéia moderna de poder exclusivo e excludente sobre um bem, da soberania absoluta, o que mostra efeitos complicados para sistema jurídico atual.

O sistema jurídico clássico não comporta a idéia de gestão superposta com igual intensidade e legitimidade . A gestão da água e da natureza é para o mundo jurídico clássico o que gato de Schodinger representa para a física clássica – um paradoxo.

Um gato está fechado em uma câmara de aço, junto ao diabólico dispositivo seguinte (que deve assegurar-se contra uma interferência direta por parte do gato): num contador Geiger há um pedacinho de uma substância radioativa, tão pequeno, que talvez no transcurso de uma hora se desintegre um átomo, mas também poderia ocorrer com igual probabilidade que nenhum átomo se desintegrasse; se ocorre o primeiro, produz-se uma descarga no tubo e mediante um relê libera-se um martelo que rompe um frasquinho de ácido cianídrico. Se se deseja que o sistema completo funcione durante uma hora, diríamos que o gato viverá se nesse tempo não tenha desintegrado nenhum átomo. A primeira desintegração atômica o envenenará.

Nas nossas mentes está absolutamente claro que o gato deve estar vivo ou morto. Por outro lado, segundo as regras da mecânica quântica, o sistema total dentro da caixa se encontra numa superposição de dois estados um com o gato vivo e o outro com o gato morto. Mas qual sentido podemos dar a um gato vivo-morto?

O paradoxo da água e da natureza está na possibilidade de uma superposição jurídica cumulativa, não excludente, que nos coloca gestores coletivos de uma natureza constantemente em suspensão . Para ela e para as águas não existem competências, existe apenas seu curso , e as pessoas são os observadores/gestores que testemunharão a possibilidade de vida E morte, sempre e ao mesmo tempo, na constância do seu uso .

Integrar políticas públicas não vai melhorar o problema, apenas vai postergá-lo com infindáveis batalhas jurídicas nacionais e internacionais, até o momento que possamos construir um sistema jurídico que ultrapasse o legado moderno e rompa definitivamente com a estrutura proprietária individual, pelo menos na gestão dos bens socioambientais.



2 comentários:

Letícia Arend disse...

Olha isso!!!!
“Roubar ”água do mar não é crime, diz fiscal


Fiscais da Secretaria Municipal de Meio Ambiente do Rio de Janeiro não consideraram crime ambiental o "roubo" de água do mar praticado pela empresa Indústria e Comércio de Importação e Exportação Ltda., na Praia do Pontal, no Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste da cidade.

A cena ocorreu na manhã da quarta-feira (11), e foi flagrada pelo Grupamento Especial de Praia da Guarda Municipal. A Secretaria, no entanto, autuou a empresa por irregularidade administrativa. Os funcionários foram liberados em seguida.

O Grupamento Especial de Praia da Guarda Municipal viu um caminhão e três funcionários da empresa enchendo dois tonéis, cada um com 50 litros, com uma bomba d´água e mangueira de cerca de 100 metros. Segundo relato dos funcionários aos guardas, a água seria utilizada para cultivo de algas na produção de cosméticos.

De acordo com a Guarda Municipal, essa não é a primeira vez que a empresa "rouba" a água do mar. Os mesmos funcionários já teriam sido avisados sobre a ação duas outras vezes. O caminhão, estacionado em local irregular, foi multado. (Com informações do G1).

Andréa Sá disse...

Caramba Letícia, o negócio é mais sério ainda!a privatização do mar já está em descarada ascensão. Ainda bem que não dá pra usucapir bens públicos senão não restaria uma gota dágua.