quarta-feira, março 28, 2007

Verdade sobre as nações indígenas

Se alguém deve reclamar de ameaça à soberania somos nós, que, hoje, temos apenas 13% de um território que já foi 100% indígena poderíamos aqui elencar uma série de dados reais sobre a Amazônia, sobre os povos indígenas e sobre os ganhos que têm a sociedade e o Estado brasileiro por reconhecer seu multiculturalismo. Vamos deixar isso para que Helio Jaguaribe o faça. Ou, então, continue publicando esses artigos burlescos e oportunistas ("Tendências/Debates", 19/ 2) que só servem de pretexto para denegrir a imagem dos povos indígenas. Primeiro, a Amazônia nunca esteve abandonada, não pelos povos indígenas, que desde sempre estiveram e estão lá, guardando as fronteiras e garantindo a integridade territorial do nosso país. Perguntamo-nos: Quem é Helio Jaguaribe para falar de nacionalismo e de perda da Amazônia, para nos acusar de formar nações com a ajuda dos americanos para reivindicarmos nossa autonomia etc.? Para informação de Jaguaribe e de mais algum nacionalista de plantão que busca culpados para a suposta "perda da Amazônia", não estamos construindo nações -nós somos nações indígenas! Não com a ajuda dos americanos, mas porque os cerca de 480 mil índios brasileiríssimos são sobreviventes de uma história de extermínio, de massacres, de chacinas e de toda sorte de discriminação e preconceito de que um povo pode ser vítima, mas que, teimosamente, sobrevive num país que, em pleno século 21, ainda abriga pensamentos e conceitos tão retrógrados sobre o direito à diferença, explicitando a intolerância que sempre caracterizou as relações de uma minoria deste país que detém o poder econômico e político em detrimento de uma maioria de diferentes. Preconceito esse que nos faz sofrer cotidianamente todos os tipos de violência, que nos faz diminuídos diante de tanta impunidade, que faz nosso sangue espesso em nossas veias finas que já não suportam tanta revolta. Somos apenas 480 mil graças a uma errônea e equivocada política de extermínio adotada durante séculos e que matou milhões em só 500 anos. Somos nações, somos povos, sim. Falamos mais de 180 línguas diferentes. É mais do que justo que o Estado que nos submeteu aos horrores do extermínio assuma a responsabilidade de proteger o que ainda resta de nossas culturas, crenças e tradições e os parcos territórios dos quais usufruímos. Não sabemos a que "americanos" se refere Jaguaribe. Se for aos estadunidenses, são do país mais resistente ao reconhecimento dos direitos humanos coletivos dos povos indígenas nos fóruns internacionais, como a ONU e a Organização dos Estados Americanos, que estão discutindo e formulando as declarações internacionais sobre os direitos dos povos indígenas. Nesses fóruns, como líderes indígenas, participamos em condições de eqüidade e igualdade com o Estado brasileiro, representado por seu corpo diplomático, os conceitos de soberania, integridade territorial, direito à livre determinação dos povos indígenas, direitos e soberania sobre suas terras, territórios e recursos naturais, entre outros. Discutimos tais direitos fundamentais para garantir um futuro digno aos povos indígenas e estabelecer, entre o Estado brasileiro e os povos indígenas, novas relações que tenham como base o respeito mútuo. Se alguém deve reclamar da ameaça à soberania somos nós, que, hoje, temos apenas 13% de um território que já foi 100% indígena e tivemos roubados e saqueados pelo menos 87% do nosso Brasil indígena. Somos os responsáveis por ainda haver grandes riquezas nas terras que nos empresta o Estado brasileiro porque respeitamos, preservamos e cuidamos delas. Jamais permitiremos nenhum tipo de intervenção estrangeira nos territórios que ocupamos. Esses territórios são as nossas casas e a única garantia de vida que resta aos nossos filhos, de quem, ao entardecer de cada dia, olhamos bem no fundo dos olhos e damos a esperança de ver no dia seguinte seus territórios desocupados e livres de invasões, para o exercício pleno e efetivo do seu direito humano à vida. Um artigo como o de Helio Jaguaribe é uma afronta às nossas árduas lutas pela conquista, e não simples "concessão", de cada palmo dos nossos territórios tradicionais. É uma afronta aos nossos povos e à memória dos nossos grandes líderes que foram assassinados pelo Brasil afora em nome da liberdade de viver como povos diferentes e dignos.

Este texto foi publicado em " Tendências e Debates" da Folha de São Paulo de 28/3/2007.

AZELENE KAINGÁNG, socióloga, e UBIRATAN WAPICHANA, advogado, são técnicos do Warã Instituto Indígena Brasileiro.

E traduzem a minha posição sobre o assunto.

domingo, março 25, 2007

Arapuca de Apucarana

Esta semana o prefeito de Apucarana, no Paraná, mandou expulsar os mendigos da cidade sob o singelo argumento que como eles não moravam lá, então deveriam voltar para suas casas nas respectivas cidades de origem.

Sem se dar conta do fato que, se mendigam, provavelmente não terão casa pra voltarem e ignorando o direito mais conhecido e exercido de todos - o de ir e vir - usou o aparato público para resolver o problema: pôs a polícia nas ruas, e, em uma espetacular ação conjunta com a assistência social, prendeu e fichou todos os mendigos por vadiagem, colocou-os no ônibus e pronto! Estava resolvido o problema. O que os olhos não vêem, o coração não sente e o olfato não cheira....

Este ato iluminista, simplista e supostamente racional me fez pensar sobre o papel desta coisa chamada soberania, tão próxima e tão inquietante.

A idéia de soberania foi apresentada para um tempo e com finalidade certos: acabar as práticas medievais de organização social baseada na multiplicidade e nos acordos políticos com os monarcas e os senhores de feudos. O argumento era que a diversidade acabava por provocar guerras e disputas de poder mas na verdade o que se queria era erigir uma comunidade européia mais homogênea em termos legais para melhoria do comércio.

Na Idade Média o poder soberano era conferido e legitimado ao rei pela sua comunidade, se originava nela. Nesta nova idéia, diria quem poderia deter o poder soberano? E quais seriam os limites do poder conferido?

Depois de muito pensar, um homem chamado Bodin, no século XVI, resolveu o problema com a seguinte proposta: o poder a ser conferido deveria ser absoluto, ou seja, em uma comunidade ordenada, o poder não poderia ser fruto de acordos, nem ser compartilhado. Além disso, deveria apresentar um “núcleo duro” - chamado assim por ser imutável - que seriam os poderes de dar e anular leis, de declarar guerra e de firmar a paz, de decidir as controvérsias entre os súditos, de nomear os magistrados e o poder de impor tributos. Nasce então a idéia central da soberania, que, de certa forma, é a mesma até hoje.

No entanto, a soberania foi contraditada posteriormente com as Constituições, que foram modificando paulatinamente sua prática. Foram sendo conquistados direitos fundamentais da pessoa humana e outras formas para se constituir o poder central e utilizá-los a partir da democracia. A soberania hoje é um poder que emana do povo, só podendo ser utilizada em seu nome. Novamente se colocam as mesmas questões do século XVI. Quem pode exercer a soberania como representante da vontade do povo? E quais são os limites dos poderes conferidos?

Como exercer a soberania sem a volta da antiga prática absolutista como lamentavelmente vimos acontecer em Apucarana? Como dar voz aos mendigos da cidade, posto que são pessoas com direitos garantidos pela constituição, ou, em última análise, garantidos por todos nós brasileiros?

A resposta talvez seja colocar diuturnamente a soberania do povo enquanto pluralidade de valores soberanos protegidos nos enunciados constitucionais, entendendo que a Constituição está vinculada como mediadora e não criadora de direitos, afastando-se, portanto, da promessa de oferecer respostas fáceis, rápidas e predeterminadas.

Talvez então a esfera pública ocupe o lugar da verdadeira soberania.

Ainda que no caminho desta possibilidade nos deparemos com situações extremas de constante desequilíbrio resultantes do processo democrático aberto, plural e indeterminado, aonde nem sempre chegaremos a uma resposta satisfatória,somente a algumas possíveis, mas continuaremos buscando sempre levar em conta a estrutura social e histórica das pessoas reais, sujeitos de uma titularidade complexa e plurissubjetiva.

No limite, esta razão deve ir além da pura parcialidade da decisão, da adoção de uma regra particular para resolver questões de razão pública. E o povo deste país, eu, você e os mendigos de Apucarana, devemos lutar para que um dia a comunidade brasileira possa colocar constante e permanentemente em discussão os próprios direitos soberanos já estabelecidos.