sexta-feira, abril 25, 2008

Quem não se comunica, se trumbica: a importância do debate sobre a TV pública brasileira


No Brasil, geralmente a recuperação do bem público é constantemente abalada pela intransigência do capital privado quando ele o administra e mantém. Isso tem um motivo histórico: quanto a Inglaterra iniciou seu projeto de TV - a BBC - ela foi pensada e estruturada como estatal e coordenada pelo povo, sendo ele, inclusive, o grande financiador do projeto (pelo imposto para acessar o sistema televisivo), aqui a televisão nasceu com um empresário privado, tendo seu financiamento efetuado com a locação de espaço de propaganda, merchandising ( prática inclusive proibida pelo Código de Defesa do Consumidor) e através de firmes parcerias com outros capitalistas do setor. Quando o Estado tomou para si a responsabilidade, aconteceram altos e baixos em sua trajetória administrativa.

Sendo assim, parece evidente que esteja acontecendo esse ataque por parte das empresas privadas contra a proposta de criação e interferência estatal na programação, avocando o termo “censura” a qualquer evidência de regulação. Isso também aconteceu nos Planos de Saúde e com os bancos quando do advento do Código de Defesa do Consumidor. Essa tensão existente entre uma lei que beneficia e traz poder ao povo e os interesses de uns pouquíssimos e riquíssimos empresários faz parte do debate social, situação a qual ainda não estamos acostumados.

Precisamos, portanto, esclarecer alguns termos jurídicos importantes,iluminando os debates que, por motivos óbvios, estão fora da mídia tradicional. Iniciemos pelo dicionário do Aurélio. Lá encontramos dois significados pra censura: o primeiro, mais técnico e lingüístico, significa condenar, criticar com finalidade de correção, reprovação. Nosso principal censor, portanto , foi nossa mãe quando nos falou o primeiro: ”menino, não mexa aí!”. O outro significado, bem mais específico e assustador, é aquele que diz: “exame de qualquer texto de caráter artístico ou informativo, feito por censor a fim de autorizar sua publicação, exibição ou divulgação”. Parece evidente que, ao se referir à censura, a Constituição Federal fala da segunda hipótese.

Regulação também pode ter dois significados: quando dizemos que nosso irmão está regulando o pudim, quer dizer que ele está nos censurando no primeiro sentido descrito acima. Do ponto de vista jurídico, a regulação é a criação de legislação seguida de fiscalização do Estado sobre um setor econômico, e deve ser produzida e executada conforme a Constituição Federal. No caso da TV pública, regular significa, sim, uma restrição à liberdade de atuação das emissoras de televisão prevista na Constituição, que sobre o assunto, diz o seguinte:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
IV - águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;

O artigo 221, inclusive, oferece direitos difusos a todo o povo brasileiro, sob a forma de princípios:


Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

O que acontece é que as emissoras de televisão confundem a população dizendo que o Estado está censurando a programação, quando, na realidade, está executando uma obrigação constitucional através de um ato absolutamente lícito chamado Regulação.

Outro ponto a ser esclarecido é a diferença entre serviço público e atividade econômica. O serviço público atua para satisfazer as necessidades da população, através dos bens, espaços públicos e verbas destinadas a este objetivo. Já atividade econômica é o exercício das empresas privadas que estão recobertas pelo artigo 170 da Constituição:


“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:”
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;

É importante notar que, ainda que esteja configurada a hipótese de livre concorrência e livre iniciativa, ambas devem estar, na sua gênese, configuradas pela valorização do trabalho, pela garantia de proporcionar uma existência digna para toda a população do Estado brasileiro, tudo isso encabeçado pelo Princípio da Justiça Social.

Embora caiba ao poder público atuar diretamente na efetivação do serviço público, ele pode ser prestado por particulares mediante delegação realizada através dos institutos jurídicos da concessão e da permissão, conforme o artigo 175 da Constituição Federal. Então, ainda que exercício de um serviço público ocorra pela mediação de um terceiro, no caso as empresas de telecomunicação e radiodifusão, a finalidade continua a mesma: a satisfação e segurança da população, que tem valor jurídico superior ao principal interesse das empresas privadas - o lucro. Por isso, a empresa que detém a concessão ou permissão está subordinada aos interesses públicos, demonstrados, por exemplo, pela regulação da área concedida. Isso está lá na Constituição, no artigo 21:


“XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;
XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:
a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens.


Diante desses pontos, constata-se a perfeita legalidade do Conselho Curador da EBC- TV Brasil, onde dos vinte e dois membros, quinze são representantes da sociedade civil, e busca melhorar uma legislação não representativa dos interesse públicos atuais, e que, entre outras coisas, mostra poucas disposições sobre o conteúdo da programação a ser distribuída.

E para seguir o famoso ditado do querido Velho Guerreiro - O Chacrinha - e a gente deixar de se trumbicar pela ausência de comunicação, repasso a todos o texto de um membro do Conselho Curador da Empresa Brasileira de Comunicação – TV Brasil, o jurista Luiz Edson Fachin, que o publicou no jornal Gazeta do Povo do Paraná,na seção Opinião, no dia 22/4/2008.


Por uma TV Pública independente

O Poder Legislativo deu sinal verde para a proposta que cria a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), com o objetivo de implantar e conduzir a TV Pública. Quais são agora os possíveis rumos dessa TV Brasil?
Na teoria, respeito à diversidade, imparcialidade, transparência e precisão podem abrir o leque de possíveis diretrizes que devem ser seguidas. Nada obstante, a que e a quem servirão?
Evidente que se almeja um veículo de boa qualidade, sem interesses comerciais, dirigido à educação, à cultura e à informação útil de interesse público. Um instrumento a serviço da sociedade, fundado em clara identidade que não se confunda com o legítimo espaço da iniciativa privada.
Contudo, tem a sociedade o direito de saber e de fiscalizar como será a prática dessa promessa. Ademais, não basta, no Brasil, produção de conteúdo de altíssima qualidade técnica.
É preciso ter-se claro que também se encontram no fundamento de uma rede de televisão pública, os objetivos fundamentais da República: construir uma sociedade justa, livre e solidária, erradicar a pobreza e marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, garantir o desenvolvimento, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação.
É um desafio na agenda de inclusão, apta a suplantar passivos históricos e a transformar estruturas sociais injustas.
O que também se espera é a democratização da informação com completa desvinculação de interesses partidários, com respeito à livre iniciativa, às identidades culturais e à participação ativa da sociedade na fiscalização da TV Pública. Superar, enfim, a hegemonia de produções de conteúdo e de transmissão.
Sendo assim, deve ser mirada na EBC a criação não de uma TV de Governo, e sim um instrumento da coletividade e do Estado brasileiro. Não se presta a TV Pública a amplificar a voz deste ou daquele governante. Cabe, isto sim, à TV Pública, respeitando os instrumentais já existentes, contribuir para a materialização dos ideais do Estado Democrático de Direito.
Ainda mais: é fundamental a distância entre as fontes de financiamento e a produção, que deve ser estimulada pela emissora em todo o País.

Veja-se o exemplo da BBC, a rede de televisão pública da Inglaterra, que é financiada diretamente pelos cidadãos, além da destinação de repasse governamental e da venda de espaços na grade.
Para além da autonomia financeira, a BBC tem um canal direto de comunicação com os telespectadores e autonomia de conteúdo. Durante a guerra das Malvinas, entre Inglaterra e Argentina, Margareth Thatcher lançou mão de todo seu poderio para censurar a cobertura que a rede fazia sobre o conflito. O esforço foi em vão graças à resistência dos dirigentes da BBC, com o respaldo da opinião pública.
Episódio semelhante se passou com a entrada da Inglaterra na Guerra do Iraque, mantendo-se a BBC distante dos interesses do então primeiro-ministro Tony Blair.
Espera-se da EBC a consciência social imposta aos instrumentos republicanos. De tal missão não pode furtar-se a própria sociedade e o Congresso Nacional, bem como o Conselho Curador, cujos deveres fiscalizatórios exigem eficaz atuação.
Deve o Conselho Curador surgir e atuar desinstalado do costumeiro caráter meramente homologatório que assumem colegiados dessa natureza tomados pelo conformismo. Tem, por certo, o dever (e o direito) de ver (e fazer) o discurso transformado em práxis.

O Brasil vai vencer esse desafio? O futuro, em breve, dará essa resposta.