terça-feira, novembro 28, 2006

Te adoro, Theodora

Em dezembro de 2005, a pequena Theodora encontrou uma família de verdade, daquelas que vê os deveres de casa, olha suas roupas e a põe pra dormir. Desde a semana passada, outra alegria transformou sua vida: sua certidão de nascimento mostra agora o nome de seus pais adotivos: Júnior de Carvalho e Vasco Pedro da Gama.

Theodora e o Brasil receberam um exemplo de coragem de seus pais e da justiça. Finalmente, o juízo e a promotoria não se detiveram ao mero procedimento judicial, mas aplicaram o núcleo de proteção firmado no Estatuto da Criança e do Adolescente, que é o melhor interesse da criança.
Para se chegar a isso, alguns cuidados devem ser cuidadosamente observados: se os adultos que deterão a guarda têm condição financeira que possa dar à criança um sustento digno, tempo disponível compatível com sua idade para cuidar de sua educação e saúde e que exista comprometimento social e afetivo do casal adotante, ou seja, união estável com finalidade de constituição de família. É possível também a adoção por uma só pessoa, que deve apresentar os mesmos requisitos acima.

A família não é uma categoria essencialmente jurídica. Ela é um dado sociológico apreendido pelo jurídico pelos seus efeitos. Assim, a paternidade e maternidade são situações de cunho jurídico que apresentam como base os papéis sociais que as pessoas assumem. Em palavras mais simples, o fato de ser pai ou mãe não está ligado ao ato de procriação biológica, nem ao sexo ou estado civil do adotante, mas sim na disponibilidade afetiva e financeira balizada pela média das pessoas brasileiras. Que tenha em suas vidas um espaço para amar alguém, fazer feliz esse alguém e que arque com seu sustento médio. Isso afasta a idéia que se precisa ter excelente situação financeira ou que precise estar 24 horas por dia à disposição da criança ou que o casal tenha que , necessariamente, apresentar sexos diferentes.

A dinâmica social recusa qualquer pretensão moralista ou autoritária de solidificar conceitos jurídicos abstratos, ainda mais quando o assunto é família. Neste campo, o bom senso aplicado de forma cuidadosa é capaz de promover acertos significativos como o caso de Theodora.

Neologismo
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.

(Manoel Bandeira)

sábado, novembro 25, 2006

De Madre de Deus a todas as mulheres

Saiu no jornal A Tarde ( de Salvador) do dia 23/11, que foram presos dois estupradores em Madre de Deus, no interior baiano. A notícia está no fato que a vítima era uma garota de programa.
Até pouco tempo atrás, as profissionais do sexo sequer iam à delegacia prestar queixa, e se tentavam, muitas vezes eram ridicularizadas e expulsas, pois sua opção de vida profissional continha um impedimento posto pela sociedade que as deixavam à mercê de violências.
É preciso deixar claro que elas são mulheres, cidadãs, e o fato de serem prostitutas não tornam menos crime ou menos danoso o estupro.
Este crime é, resumidamente, a prática de ato sexual sem consentimento da mulher, bastando que isso se configure para ser considerado crime, e assim é porque a ausência de consentimento já configura a hipótese de violência. O crime é reconhecido apenas contra mulheres, mas a lei não traz nenhuma exceção com relação à sua condição social (classe, profissão ou o fato de ser casada ou não). É importante também que o consentimento deve permanecer durante todo o ato, ou seja, se a mulher deseja a relação sexual e, por algum motivo, desiste, já está configurada a ausência do consentimento. Se há insistência, passa a existir a violência.
Isso acontece também com as casadas, namoradas ou as que mantêm qualquer tipo de relação íntima. A inviolabilidade está no respeito incondicional e absoluto de todas as pessoas ao corpo do outro, e na recusa já está contido o pleno exercício do direito do não. Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, diz o inciso II do artigo 5 da Constituição Federal (o que trata dos direito e garantias individuais e coletivas). Também diz a boa razão que o âmago da existência deste mandamento é que é indigno, desumano e cruel colocar o outro mediante situação entre a morte e o estupro, entre a violência e a violência, entendendo que é possível matar alguém sem tirar-lhe a vida e estuprar alguém ainda que dentro do casamento.
Parabéns ao delegado que recebeu uma mulher em prantos e desespero com todo o acolhimento e respeito que necessitava, encaminhando as diligências necessárias em atenção à sua função pública. Parabéns a todos os outros delegados que assim procedem todos os dias e não saem nos jornais.
Meu mais absoluto respeito a esta mulher corajosa que soube se fazer respeitar e, ao dirigir-se à delegacia, talvez sem saber, postulou em nome de todas nós mulheres, o direito de um viver um pouco mais digno.

domingo, novembro 12, 2006

O crime errado




A notícia da condenação do sociólogo Emir Sader nos causa diferentes reações e incontáveis perguntas. Decidi, após os instantes iniciais de indignação, pensar no núcleo da questão que parece ser o conflito entre direitos.
A instauração do Estado Moderno trouxe um rol de direitos que foram chamados de civis por conferirem reconhecimento às pessoas comuns de um aporte de cidadania. Estes direitos foram incorporados através da Constituição, ou seja, o Estado se constituiu e ao mesmo tempo constituiu as pessoas que irão confirmá-lo e redirecioná-lo ao longo do tempo. Para isso, estabeleceu como premissa a igualdade e liberdade de todas as pessoas para que, através destes dispositivos, pudessem avaliar e discutir os assuntos pertinentes à vida privada ou pública, incluindo o próprio Estado na órbita de discussão.
Este núcleo de direitos oferecidos pelo Estado a cada um de seus cidadãos são chamados de direitos subjetivos (dos sujeitos). Assim, cada direito incluído na carta constitucional gera um direito subjetivo correspondente, qual seja, o de exigir seu cumprimento .
E como novos direitos vão sendo incluídos no rol de direitos do Estado?
Com o passar do tempo, novas necessidades aparecem no corpo social, confrontando o próprio Estado em suas deficiências. Um dos papéis da democracia é o de criar procedimentos que viabilizem as exigências sociais e as façam integrar através da elaboração legislativa de novos direitos.
Dito assim, parece tudo bem, mas existe uma linha de tensão que é a seguinte: o direito também diz o lícito e ilícito e o faz, em resumo, através de dois caminhos: o direito penal – mais grave por discutir a liberdade do sujeito, e o direito civil – mais leve por constranger seu patrimônio. Poderíamos dizer que a liberdade de cada sujeito colocada na Constituição é total, assim como do outro e do outro e assim sucessivamente. E que esta liberdade é total porque ela constitui o núcleo da própria idéia de Estado Democrático de Direito.
Diante disso, qualquer pessoa pode, exercendo seu direito de ser livre, chegar no limite da ilicitude, podendo, em alguns casos, ultrapassá-la, ainda sob a égide do direito inicial de liberdade.
Imagine o direito à greve. No início ele era ilícito, mas existia em cada trabalhador o direito de manifestação de sua liberdade que era exercido plenamente. Isso “empurrou” o limite da ilicitude a um ponto máximo que pôde se converter em direito aquilo que não era sequer lícito. É assim, através desta tensão, que se erigem os novos direitos.
No caso do professor Emir, ele utilizou a expressão máxima de sua liberdade enquanto cidadão, indignado pelo o que disse o outro cidadão, o Sr. Bornhausen, utilizando ambos da mesma liberdade conferida pela Constituição. Não são duas liberdades diferentes. Portanto, não se pode argumentar diferenças de local de onde se fala, de quem fala, etc. Não precisa chegar a isso. Qualquer um de nós poderíamos ter escrito ou falado o mesmo. Na verdade muitos de nós quisemos fazer isso. Emir fez.
Ao expor sua liberdade, ele foi limitado pelo direito penal. E isso é emblemático. Foi utilizado contra um cidadão comum o mais poderoso instrumento que o Estado dispõe para constranger aquelas atitudes graves, contrárias ao Estado de Direito.
E aqui se instala a inconformidade, a inquietação e a contradição.
Não foi colocado contra o sociólogo o instrumento civil, aquele capaz de ressarcir, redimir, retratar, reeditar, oferecer explicações ao público. Não. Este instrumento talvez fosse o mais indicado, pois faria que todos participassem da questão que foi tornada pública. Ao contrário, foi no âmbito penal, fora do círculo social de discussão, que se deu o trâmite do conflito. Um conflito tomado como se fosse individual, um crime de um cidadão contra a honra de outro cidadão, apartado do impacto dos efeitos sociais causados.
E pior, a sentença trouxe uma inverdade. O sociólogo foi afastado de sua cátedra, punição extrema e sem sentido, pois não foi deste lugar que foram ditas as palavras julgadas injuriosas, e, ainda que fosse, estaria recoberto pela liberdade nuclear de dizer o que se pensa, já exposta acima.
As tensões trazidas por estes debates costumam mostrar novos padrões sociais e a discussão sobre novos direitos, uma vez que, ainda que sejam necessários, a democracia não é composta apenas por procedimentos, ou seja, o jogo democrático não se resume às suas regras , mas principalmente ao seu conteúdo. A possibilidade de se colocar em discussão qual regra de direito deve ser aplicada a determinado caso pressupõe a ponderação de outros princípios também constitucionais. Trata-se de construir direitos através de valores sociais , de perceber se o que se aplica pelos Tribunais é o que a sociedade determina ou se ele ainda está impregnado de opções de fundo político e ideológico.





domingo, novembro 05, 2006

Bush, a linha do xinga mãe e o direito de propriedade

Quando eu era criança havia uma maneira de chamar para a briga. Uma criança fazia um risco no chão – com o pé, ou com um graveto- e cuspia na parte do outro ( aquele que se queria chamar para a briga). Esta linha de separação se chamava “linha do xinga mãe”.

O que se queria dizer com o singelo gesto é que havia uma quebra de continuidade na amizade. Havia pairado uma dúvida sobre alguma atitude do outro, e o conflito então era chamado como instância de resolução. A representação deste conflito se dava no desenho de um espaço de exclusão , de separação , de uma linha limite no espaço da amizade em risco.

Quando a gente cresce, a linha torna-se mais sólida e duradoura. Colocamos cercas, fios, muros como forma de deixar claro não somente um conflito. Se o muro é a representação de um sentimento de separação, resulta dele espaços do meu e do não-meu , espaços de pertencimento que a história aprisionou em um direito: o de propriedade.

O direito de propriedade tem data: iniciou com o que chamamos de modernidade, que a gente estabeleceu como início a partir da Revolução Francesa. Não que inexistisse antes disso a noção de pertencimento de algo como sendo de alguém, mas o que ocorreu foi que isso se tornou um direito,por conseguinte, passível de ser exigido seu cumprimento.

Em outras palavras, ter coisas não era uma idéia moderna, mas ter coisas e ter o poder de expulsar o outro de suas coisas, isso sim era uma invenção revolucionária.

Com o direito de ter coisas só para si, o homem precisou delimitar os espaços de seu direito único e excludente, e é o tem feito desde então, com diferentes graus de tecnologia.
Com o tempo, não só os homens particulares lançaram mão deste artifício. O próprio Estado também o fez, na tentativa de manter suas fronteiras livres de inimigos e de organizar seus espaços, suas leis e seu povo. Muitas vezes na história vimos exemplos de muros: o Muro de Berlim,e os que separavam as favelas de Soweto na África do Sul, nos tempos do apartheid são apenas dois exemplos.

Não só de muros de verdade são construídos. Muros jurídicos, de diferentes formas e tamanhos, internacionais, vistos, passaportes, cumprimento de destinos,uma enorme burocracia demonstrando um incindível sentimento de propriedade das riquezas exclusivas de um país exclusivamente para sua população. Se isso normalmente é suficiente, qual seria o motivo de Bush, ao construir um muro , agora sólido e visível?
Qual finalidade seria capaz de gerar uma clareza de exclusão de todos os povos?

Nenhuma estratégia de Estado , porém ,diminui uma certeza. O muro divide. Coloca em espaços separados pessoas ou coisas que não se quer juntos, retoma o mesmo sentimento belicoso da linha do xinga mãe, trazendo para o conflito aberto a certeza da impossibilidade da amizade e do consenso.

quinta-feira, novembro 02, 2006

Bom Dia Brasil e a cultura do medo

O Bom Dia Brasil do dia 31 de outubro , dia das bruxas, foi um dos mais assustadores dos últimos tempos.
O jornalista Alexandre Garcia tentou nos convencer que, há muito tempo, estamos, os viajantes que utilizam aviões, por um fio. Disse que a gente não sabia que corríamos riscos tão grandes , mas que o governo já sabia , há 3 anos, que isso acontecia.
Vamos analisar isso por partes.
1-Nos últimos, por exemplo, 5 anos, quantos desastres aéreos tivemos no Brasil, que, após perícia e o devido processo, tenha constatado que havia negligência, imprudência ou imperícia dos controladores de trafego aéreo?
2-O jornalista colocou o relatório supostamente enviado à presidência ou ao ministro, na tela, mas não colocou nenhuma resposta das autoridades no mesmo momento ( isso foi colocado depois, durante a semana)
O jornalista como qualquer profissional tem o dever de informar a notícia e/ou opinião devidamente fundamentada em fatos ou depoimentos das partes envolvidas. Se não o fizer, responde com responsabilidade civil ele, pessoalmente, e a empresa veiculadora da informação incompleta. Sabe por quê?
Porque a empresa de comunicação, através de seus veículos ( jornal, rádio , TV, revistas) tem como mercadoria a informação clara, precisa e fundamentada, e nós, os consumidores, compramos o serviço para que tenhamos acesso a informação . No fundo , tanto o jornalista quanto a empresa de comunicação vendem CREDIBILIDADE. Não é qualquer informação. Não é informação parcial que o consumidor pretende e compra. Assim como não é o jornal, a revista, ou o programa que a empresa vende. Isso é o suporte onde está a verdadeira mercadoria: informação completa boa e honesta.
Bem se existe uma compra e venda, estamos no terreno da relação de consumo, o que incorre na possibilidade de indenização por parte do fornecedor da informação - seja o jornalista , seja a empresa- aos consumidores que estejam submetidos, direta ou indiretamente, à informação indevidamente difundida.
A atitude do Alexandre Garcia me lembrou o livro Cultura do Medo, do Barry Glassner. Leitura excelente para que a gente perceba quantas inverdades são manipuladas pela imprensa , espalhando desconfiança sem o menor fundamento, fazendo que a gente desconfie até da nossa própria mãezinha, dos vizinhos, da professora de nossos filhos, e até do presidente da república, que pareceu um monstro distraído que, de propósito, deixou o caos acontecer para que tomasse uma decisão. Será que foi assim mesmo?
O jornalista SABE ou deveria saber, por dever de profissão, como conduzir uma matéria. Se não o faz, deve responder por ela.
Devemos portanto ficar atentos para esses medos , às vezes infundados, que nos submetem os veículos de informação. E boa viagem.

O gato da Marília saiu de casa...

Deu na Folha, 1a página, 27/10/06: Marília Gabriela e Gianecchini separaram as escovas.
E o que significa isso pro Direito?
A princípio nadinha, até porque a reportagem afirma que tudo foi na paz. Se não fosse, aí sim, o direito tinha que ser chamado. E o que ele diria?
Diria que tudo o que foi comprado para o casal, ainda que seja pra um só usar,com o dinheiro próprio, mesmo assim o companheiro(a) tem direito a metade, porque o direito parte da idéia que existe comunhão, cumplicidade e dever de sustento em todas as instâncias, no que se chama união estável. Parece estranho mas não é, afinal é uma idéia bonita, não?
Quando um casal resolve viver junto ( união estável), o direito não se preocupa na hora da união ( ao contrário do casamento), mas na hora da dissolução sim. E isso passou a existir exatamente para evitar injustiças, quando um ficava com a maior parte dos bens só porque eles estavam no nome de um deles.
Mesmo assim, o melhor mesmo é conversar e tentar a divisão por via consensual. Assim o juiz só vai assinar embaixo do que o casal decidir ( desde que, claro, o que eles decidam não seja por demais injusto ou contrário ao direito). É difícil, doloroso e demorado, mas, sem dúvida, é o melhor. Já pensou deixar alguém de fora, que não conhece o casal, que às vezes nem casado foi, resolver coisas tão íntimas?
Melhor enxugar as lágrimas, guardar o rancor e usar a cabeça. Resolver nossos problemas por nós mesmos é a melhor garantia de paz futura.