sexta-feira, dezembro 21, 2007

O direito de desobedecer

Quando iniciou a greve de fome, o Bispo Franciscano Dom Cappio disse em uma entrevista: “ quando a razão termina, a insanidade é uma opção”.

O que o Bispo disse é que a razão - representada pela modernidade que tudo quer compreender e que tem como mito formador o contrato de todos para alcançarmos a liberdade, a igualdade e a fraternidade – não consegue mais dar conta das desigualdades e das privações que a realidade brasileira joga em nossas caras todos os dias. E que o diálogo fundador de todo contrato está contaminado pelo poder exercido entre o capital e a miséria por ele produzida.

O ato do Bispo não é uma insanidade, chama-se desobediência civil e consiste em uma maneira que uma pessoa ou grupo dispõe para se opor pacificamente a um poder político constituído. Foi usado muitas vezes na história, como por exemplo por Ghandi e Martin Luther King assim como por dezenas de pessoas que se tornaram mártires justamente por doar-se totalmente, às vezes até a morte, por uma causa.

Foi um estadunidense, Henry Thoureau, que estabeleceu essa tese que se encontra em um livro (facilmente encontrado inclusive em edições de bolso) chamado “Desobediência Civil”. Neste ensaio, o autor defende que qualquer pessoa pode aprovar ou não as determinações do governo, e se não aprovar, pode não apoiá-lo fazendo atos de oposição pacífica.

Do ponto de vista jurídico, a tese é a prática social do direito de resistência, ou seja, um tipo de direito que apesar de não figurar no rol de direitos estabelecidos pelo Estado tem expressão jurídica por representar a opção de garantia de outros direitos básicos estabelecidos pelas leis. Assim é um direito que parte de fora do Estado, de fora do contrato social, mas que pode ser exercido ainda que não haja lei formal que o defina. O direito de resistência origina além da desobediência civil, o direito de greve (quando o que está em jogo é a proteção de direitos assegurados ou que devem ser constituídos nas relações de trabalho) e o direito de revolução (cujo titular é o povo, quando sua soberania é ferida).

Durante a greve de fome, muitas foram as opiniões sobre a atitude do Bispo. Chamo a atenção de duas que partiram do Governador do estado da Bahia, Jacques Wagner, ex-sindicalista e profundo conhecedor do direito de resistência. Disse ele, em entrevista a jornais e a redes de televisão, que o Franciscano estaria ferindo a democracia com seu ato radical. No mesmo sentido, o jornalista Alexandre Garcia em seu comentário diário na rádio “A Tarde” de Salvador, disse que o bispo estaria ferindo o catolicismo, e que ele (o jornalista) lembrava que na sua primeira comunhão havia sido dito que suicídio era pecado.

Como foi dito acima, o direito de resistência é justamente a maneira externa ao Estado que a pessoa dispõe de se mostrar contra atos incompatíveis com a democracia substancial. Durante as votações (exemplo clássico da democracia formal) certamente o Bispo e os habitantes ribeirinhos colocaram seus votos nas urnas, assim como também tentaram dialogar com o governo local e central sobre alternativas à transposição do Rio São Francisco. A opção derradeira do Bispo foi tentar, partindo de um ato externo ao contrato social, inserir a demanda social imediatamente em pauta. Exerceu um direito de resistência a um ato que ele não concorda e que tem inclusive substrato técnico para discordar. Ele não tentou o suicídio, que é um ato pessoal de atentar contra a própria vida, ele cometeu um ato civil, ainda que de desobediência. Civil porque ele não quebrou as máquinas, não xingou os soldados do exército que lá estão, nem deu um tiro na cabeça: ele apenas exerceu um direito.

Adauto Novaes, no livro que organizou chamado “O avesso da liberdade”, escreveu que devemos evitar a polaridade entre liberdade e servidão como se ambos fossem excludentes e nossa escolha fosse incondicionada. Exatamente por isso devemos tentar ser livres dentro da servidão e deixarmos de pensar em uma democracia padrão, como se só existisse uma maneira de exercê-la. A democracia não é um conceito estático, não está pronta e acabada. A cada momento a democracia deve dar margem à instituição de novas alternativas. Como escreveu Novaes: “o formalismo democrático não deixa campo livre à experiência da indeterminação e à interrogação sobre os fundamentos clássicos. Esta definição de democracia abole a possibilidade do novo.”

O Bispo, apesar de ter saído do seu jejum deixou pelo menos duas profundas lições: nos lembrou que a afirmação da liberdade e da democracia se dá através de atos contra a sujeição, sejam eles cotidianos ou não e que esses atos mostram que uma democracia se move em busca de seus fundamentos e que uma sociedade só pode se dizer autônoma quando pode rever todos os seus conceitos sempre que seja necessário.