terça-feira, dezembro 26, 2006

Metrô rosinha

A lei 4.733 de 23/03/2006, editada no Rio de Janeiro confere um direito exclusivo às mulheres: andar de metrô ou trem nos horários de pico – determinado em lei como sendo de 6:00 às 9:00 horas, e das 17:00 às 20:00 horas, em vagões exclusivamente femininos. Meu irmão me perguntou: isso é discriminatório?

As leis devem ser, por princípio, para todos, sem exceções. E é uma lei, a Constituição Federal, que nos informa isso. No entanto, justamente para alcançar a igualdade real, às vezes torna-se necessário que a lei também distinga alguns grupos de sujeitos, reconhecendo que, na prática social, eles não conseguem por si só alcançarem a igualdade. Eles precisam de um “calço legal”, que são criados para que estes grupos possam relacionar-se em pé de igualdade com toda a sociedade.

A estes grupos de sujeitos são reconhecidas proteções especiais, direitos permanentes ou temporários, que deverão ser respeitados enquanto o sujeito estiver na situação que a lei descreve.

Muitos são os casos: o estatuto da criança e do adolescente e o estatuto do idoso reconhecem proteção a sujeitos que estejam em determinadas faixas etárias; gestantes e mulheres que amamentam, pessoas com moléstias consideradas graves (como câncer e AIDS), trabalhadores acidentados ou simplesmente doentes, consumidores, homens com filhos recém nascidos. Realidades sociais que podemos estar ocupando por determinados momentos ou permanentemente, nos colocando em posição de alguma desigualdade ou de desvantagem tal, que a sociedade fornece para estas situações uma lei protetiva.

Estas leis não apresentam caráter discriminatório por duas razões fundamentais: primeiro, são frutos de um consenso social que reconhece a existência de diferenças entre os cidadãos. Apresentam caráter de proteção a uma possível desigualdade, e que, em algum momento de nossa vida social podemos – ainda que não queiramos - figurar como sujeitos destes grupos. A segunda razão decorrente da primeira, é que as leis protetivas têm um caráter de generalidade, continuam sendo para todas as pessoas que estejam inseridas naquele grupo de sujeitos. Por exemplo: todos os idosos – não apenas os que moram no Rio, ou que andam de táxi, ou que são ricos. TODOS estão tutelados pela lei dos idosos, bastando que atinjam a idade por ela determinada. Assim acontece com todas as crianças, todos os adolescentes, todos os doentes, todas as gestantes. Não confere privilégios, mas reconhece direitos a grupos (sociais) de sujeitos hipossuficientes, ou seja, nas situações onde todos os pertencentes àquele grupo necessitam de auxílio (o calço) legal para que restabeleçam a condição de igualdade constitucional.

Voltando à pergunta de meu irmão, existe nesta lei alguma discriminação?

1-Qual é o grupo de sujeitos a quem a lei 4.733 alcança?
As mulheres do Rio de Janeiro (a lei é estadual) que andam de transporte ferroviário e metroviário. Não configura, pois, generalidade dos sujeitos a serem protegidos. O que existe nas mulheres cariocas que utilizam estes transportes que as diferencia das mulheres cariocas que utilizam táxi ou ônibus?

2- Qual a hipossuficiência que aparece nos vagões do estado? Onde está a desigualdade substancial tão importante a ponto de criar uma lei especial ?

Parece que o estado está querendo defender as mulheres que andam de trem e metrô partindo da premissa que elas estão à mercê de práticas de assédio masculinas. Se for isso, ele dispõe do poder de polícia e a lei dispõe de vários tipos penais para efetuar o controle social. Sem contar com as medidas sócio-educativas: câmeras, polícia para flagrar e educação básica costumam dar certo nestes casos.

A lei 4.733 não parece ter sido criada por razões de ordem jurídica. É discriminatória porque não somente as mulheres carecem de proteção para andarem de metrô ou de trem no Rio de janeiro. Está na contramão da história porque retoma uma situação há muito repudiada, uma forma de apartar parte da população por medo da outra parte, sem nenhum grau de razoabilidade nem legal nem social.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Para dizer que não falei da Gol


No começo era contra a Gol, depois passou para a empresa americana, depois para os pilotos da Gol, depois, para os da empresa americana. Depois, foi falha do transponder, depois, dos controladores, depois dos radares da Infraero. Eu pergunto: qual a causa real desta aparente confusão?

Convido os leitores a estudar um pouco de responsabilidade civil e tentar entender este conflito.

Responsabilidade é uma atitude que todas as pessoas devem apresentar e que se resume em assumir as conseqüências de seus atos ou omissões perante a sociedade, porque existe um dever de todos em não infringir danos a pessoas ou coisas.

A responsabilidade civil impõe uma indenização para tentar reparar o dano causado, caso não possa recuperar a coisa que sofreu o dano.

A estrutura da responsabilidade contém três elementos: o ato (ação ou omissão) do sujeito, o dano e o nexo de causalidade. O ato deve partir sempre de uma pessoa natural, executado com discernimento, e, como normalmente ninguém sai por aí causando dano a tudo e a todos, o direito supõe que, ao fazê-lo, seja por imprudência, negligência ou imperícia. Chamamos esse conjunto de elementos de “culpa”, causador da responsabilidade subjetiva, porque é cometido por um sujeito.

Às vezes o sujeito que executou o ato está sob comando de outro (um empregado de uma empresa). Como a empresa jamais pode responder por negligência, imprudência ou imperícia, por serem atributos somente de atos humanos, ela responde por ter escolhido mal seu funcionário, o que configura um exemplo de responsabilidade “in eligendo” .

No entanto, existem situações nas quais a natureza do objeto da empresa tem grande risco de produzir danos, ainda que se tenha muito cuidado. Nestes casos, a empresa responde diretamente – objetivamente - pelo risco já presumido, bastando que se prove o nexo de causalidade e o dano. É a obrigação de segurança que toda empresa deve apresentar e algumas devem ter mais um pouco pelo enorme risco social que representa seu objeto.

O dano ou prejuízo deve ser provado e não necessariamente deve ser uma coisa ruim. Por exemplo: se uma pessoa fizer um outdoor dizendo o quanto sou maravilhosa sob minha foto, isso pode ser considerado um evento danoso, por interferir em minha vida pessoal. E, por fim, o nexo causal é o seguinte: deve-se provar que aquele ato do sujeito, e somente ele, provocou aquele dano. Um foi causa do outro.

Assim, se um carro bate em outro, o motorista que provocou o acidente é responsável e quem sofreu o dano só tem um caminho: acioná-lo por culpa. Se o carro que colidiu for de uma empresa, quem sofreu o dano tem dois caminhos: acionar a empresa por culpa in eligendo ou o motorista por culpa. Como normalmente a empresa tem mais patrimônio, é ela a escolhida. Ela tem então ação regressiva contra o motorista, ou seja, pode cobrar dele posteriormente.

E se um avião de uma empresa abalroa um outro avião de outra empresa? A mesma coisa acontece, com um agravante: o transporte de passageiros é uma atividade de risco, sendo portanto de responsabilidade objetiva da empresa. É tão importante esta responsabilidade que ela não pode ser afastada por fato de terceiro, ou seja, ainda que uma outra pessoa (jurídica ou natural) tenha produzido uma falha mecânica AINDA ASSIM NÃO SE AFASTA A RESPONSABILIDADE DA EMPRESA TRANSPORTADORA. É o que diz o artigo 735 do Código Civil Brasileiro: “a responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva”.

Então é muito simples.

1- A empresa transportadora cujo avião colidiu com o avião da Gol deve ser acionada por ela pelo prejuízo material sofrido.
2- As famílias devem acionar a Gol por quebra de confiança porque contrato era de fim, ou seja, ela deveria ter levado seus passageiros com segurança até o destino e não o fez. Cabe, lógico, os danos morais de cada passageiro.

Este é o caminho processualmente mais rápido porque, como foi dito, nada retira a responsabilidade da empresa transportadora! Nem transponders, nem controladores, nem radares, nada! Ela é objetiva, ou seja, segurança presumida pela lei. Se a Gol quiser discutir depois, entrar com ação regressiva contra quem quiser, que faça, mas os passageiros nada têm a ver com isso!

E fica a pergunta: qual o real motivo dessa aparente confusão?

domingo, dezembro 03, 2006

HIV: entre nós e nãos

Em muitos momentos da história do mundo os homens sofreram com a presença das doenças que representavam o motivo de afastamento de suas famílias, tirando-lhes o sustento, causando dor e angústia. De certa maneira, as doenças incentivaram os homens a partirem em busca de grandes descobertas, abrindo caminhos através da superação de seus próprios limites, permitindo a reavaliação de tratamentos e métodos e, sobretudo, modificando a percepção em torno do seu significado social.

Posturas diversas foram tomadas desde a constatação da epidemia de HIV/AIDS não só no âmbito da saúde pública e farmacologia como também na reorganização do universo social e da informação de massa. O impacto da doença fez surgir uma gama de sentimentos, variando entre a indignação, indulgência e repulsa,o que fez criar ao longo do tempo, reflexos no mundo jurídico.

Estes reflexos se mostram a cada dia, nas inúmeras situações que a doença cria , gerando um núcleo essencial de novos direitos nas diversas instâncias do viver onde está o sujeito soropositivo. Isso acontece porque ao se ver compelido a percorrer uma nova trilha de ações em busca da tutela oferecida pelo Estado ou por particulares, a pessoa se vê perdida em um emaranhado de nós e nãos, que a conduzem ao desânimo e desespero .

Esses novos direitos estão ligados à personalidade do sujeito , e têm o condão de trazer à tona não somente a tutela referente ao afastamento das atividades produtivas - já garantida pelo direito previdenciário e do trabalho - mas sobretudo nas situações cotidianas de exclusão, que passam a ser uma perversa rotina na vida dos portadores de HIV/AIDS.

Um direito arcaico, unidimensional e excludente gera problemas quando não existe previsão legal imediata e dificulta em muito aquelas que, apesar de estarem amparadas pela lei, são interpretadas restritivamente, já que parte da premissa de que o sujeito doente deve ser afastado do convívio ao invés de vê-lo pleno de direitos como qualquer outra pessoa.

O grupo portador de HIV/AIDS luta pelo direito à convivência pacífica, ao trabalho e à vida, dignidades conferidas a todos , sem que se necessite assumir defesas em torno de preconceitos de toda ordem. Quer conviver em paz com a sua situação de portador de um vírus sem que precise falar todos os dias sobre a ausência de cura ou o medo da morte .

O direito deve ser chamado a cada remédio não entregue, a cada recusa de acesso ao especialista, a cada espera desmotivada nas salas que antecedem o atendimento . E deve ir além : para o jurista, dialogar com a realidade é oferecer ao soropositivo a possibilidade de fazê-lo reassumir atitudes de compreensão da dinâmica social de sua doença e instrumentalizá-lo para as várias lutas individuais e coletivas que continuarão inexoravelmente acontecendo.

terça-feira, novembro 28, 2006

Te adoro, Theodora

Em dezembro de 2005, a pequena Theodora encontrou uma família de verdade, daquelas que vê os deveres de casa, olha suas roupas e a põe pra dormir. Desde a semana passada, outra alegria transformou sua vida: sua certidão de nascimento mostra agora o nome de seus pais adotivos: Júnior de Carvalho e Vasco Pedro da Gama.

Theodora e o Brasil receberam um exemplo de coragem de seus pais e da justiça. Finalmente, o juízo e a promotoria não se detiveram ao mero procedimento judicial, mas aplicaram o núcleo de proteção firmado no Estatuto da Criança e do Adolescente, que é o melhor interesse da criança.
Para se chegar a isso, alguns cuidados devem ser cuidadosamente observados: se os adultos que deterão a guarda têm condição financeira que possa dar à criança um sustento digno, tempo disponível compatível com sua idade para cuidar de sua educação e saúde e que exista comprometimento social e afetivo do casal adotante, ou seja, união estável com finalidade de constituição de família. É possível também a adoção por uma só pessoa, que deve apresentar os mesmos requisitos acima.

A família não é uma categoria essencialmente jurídica. Ela é um dado sociológico apreendido pelo jurídico pelos seus efeitos. Assim, a paternidade e maternidade são situações de cunho jurídico que apresentam como base os papéis sociais que as pessoas assumem. Em palavras mais simples, o fato de ser pai ou mãe não está ligado ao ato de procriação biológica, nem ao sexo ou estado civil do adotante, mas sim na disponibilidade afetiva e financeira balizada pela média das pessoas brasileiras. Que tenha em suas vidas um espaço para amar alguém, fazer feliz esse alguém e que arque com seu sustento médio. Isso afasta a idéia que se precisa ter excelente situação financeira ou que precise estar 24 horas por dia à disposição da criança ou que o casal tenha que , necessariamente, apresentar sexos diferentes.

A dinâmica social recusa qualquer pretensão moralista ou autoritária de solidificar conceitos jurídicos abstratos, ainda mais quando o assunto é família. Neste campo, o bom senso aplicado de forma cuidadosa é capaz de promover acertos significativos como o caso de Theodora.

Neologismo
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.

(Manoel Bandeira)

sábado, novembro 25, 2006

De Madre de Deus a todas as mulheres

Saiu no jornal A Tarde ( de Salvador) do dia 23/11, que foram presos dois estupradores em Madre de Deus, no interior baiano. A notícia está no fato que a vítima era uma garota de programa.
Até pouco tempo atrás, as profissionais do sexo sequer iam à delegacia prestar queixa, e se tentavam, muitas vezes eram ridicularizadas e expulsas, pois sua opção de vida profissional continha um impedimento posto pela sociedade que as deixavam à mercê de violências.
É preciso deixar claro que elas são mulheres, cidadãs, e o fato de serem prostitutas não tornam menos crime ou menos danoso o estupro.
Este crime é, resumidamente, a prática de ato sexual sem consentimento da mulher, bastando que isso se configure para ser considerado crime, e assim é porque a ausência de consentimento já configura a hipótese de violência. O crime é reconhecido apenas contra mulheres, mas a lei não traz nenhuma exceção com relação à sua condição social (classe, profissão ou o fato de ser casada ou não). É importante também que o consentimento deve permanecer durante todo o ato, ou seja, se a mulher deseja a relação sexual e, por algum motivo, desiste, já está configurada a ausência do consentimento. Se há insistência, passa a existir a violência.
Isso acontece também com as casadas, namoradas ou as que mantêm qualquer tipo de relação íntima. A inviolabilidade está no respeito incondicional e absoluto de todas as pessoas ao corpo do outro, e na recusa já está contido o pleno exercício do direito do não. Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, diz o inciso II do artigo 5 da Constituição Federal (o que trata dos direito e garantias individuais e coletivas). Também diz a boa razão que o âmago da existência deste mandamento é que é indigno, desumano e cruel colocar o outro mediante situação entre a morte e o estupro, entre a violência e a violência, entendendo que é possível matar alguém sem tirar-lhe a vida e estuprar alguém ainda que dentro do casamento.
Parabéns ao delegado que recebeu uma mulher em prantos e desespero com todo o acolhimento e respeito que necessitava, encaminhando as diligências necessárias em atenção à sua função pública. Parabéns a todos os outros delegados que assim procedem todos os dias e não saem nos jornais.
Meu mais absoluto respeito a esta mulher corajosa que soube se fazer respeitar e, ao dirigir-se à delegacia, talvez sem saber, postulou em nome de todas nós mulheres, o direito de um viver um pouco mais digno.

domingo, novembro 12, 2006

O crime errado




A notícia da condenação do sociólogo Emir Sader nos causa diferentes reações e incontáveis perguntas. Decidi, após os instantes iniciais de indignação, pensar no núcleo da questão que parece ser o conflito entre direitos.
A instauração do Estado Moderno trouxe um rol de direitos que foram chamados de civis por conferirem reconhecimento às pessoas comuns de um aporte de cidadania. Estes direitos foram incorporados através da Constituição, ou seja, o Estado se constituiu e ao mesmo tempo constituiu as pessoas que irão confirmá-lo e redirecioná-lo ao longo do tempo. Para isso, estabeleceu como premissa a igualdade e liberdade de todas as pessoas para que, através destes dispositivos, pudessem avaliar e discutir os assuntos pertinentes à vida privada ou pública, incluindo o próprio Estado na órbita de discussão.
Este núcleo de direitos oferecidos pelo Estado a cada um de seus cidadãos são chamados de direitos subjetivos (dos sujeitos). Assim, cada direito incluído na carta constitucional gera um direito subjetivo correspondente, qual seja, o de exigir seu cumprimento .
E como novos direitos vão sendo incluídos no rol de direitos do Estado?
Com o passar do tempo, novas necessidades aparecem no corpo social, confrontando o próprio Estado em suas deficiências. Um dos papéis da democracia é o de criar procedimentos que viabilizem as exigências sociais e as façam integrar através da elaboração legislativa de novos direitos.
Dito assim, parece tudo bem, mas existe uma linha de tensão que é a seguinte: o direito também diz o lícito e ilícito e o faz, em resumo, através de dois caminhos: o direito penal – mais grave por discutir a liberdade do sujeito, e o direito civil – mais leve por constranger seu patrimônio. Poderíamos dizer que a liberdade de cada sujeito colocada na Constituição é total, assim como do outro e do outro e assim sucessivamente. E que esta liberdade é total porque ela constitui o núcleo da própria idéia de Estado Democrático de Direito.
Diante disso, qualquer pessoa pode, exercendo seu direito de ser livre, chegar no limite da ilicitude, podendo, em alguns casos, ultrapassá-la, ainda sob a égide do direito inicial de liberdade.
Imagine o direito à greve. No início ele era ilícito, mas existia em cada trabalhador o direito de manifestação de sua liberdade que era exercido plenamente. Isso “empurrou” o limite da ilicitude a um ponto máximo que pôde se converter em direito aquilo que não era sequer lícito. É assim, através desta tensão, que se erigem os novos direitos.
No caso do professor Emir, ele utilizou a expressão máxima de sua liberdade enquanto cidadão, indignado pelo o que disse o outro cidadão, o Sr. Bornhausen, utilizando ambos da mesma liberdade conferida pela Constituição. Não são duas liberdades diferentes. Portanto, não se pode argumentar diferenças de local de onde se fala, de quem fala, etc. Não precisa chegar a isso. Qualquer um de nós poderíamos ter escrito ou falado o mesmo. Na verdade muitos de nós quisemos fazer isso. Emir fez.
Ao expor sua liberdade, ele foi limitado pelo direito penal. E isso é emblemático. Foi utilizado contra um cidadão comum o mais poderoso instrumento que o Estado dispõe para constranger aquelas atitudes graves, contrárias ao Estado de Direito.
E aqui se instala a inconformidade, a inquietação e a contradição.
Não foi colocado contra o sociólogo o instrumento civil, aquele capaz de ressarcir, redimir, retratar, reeditar, oferecer explicações ao público. Não. Este instrumento talvez fosse o mais indicado, pois faria que todos participassem da questão que foi tornada pública. Ao contrário, foi no âmbito penal, fora do círculo social de discussão, que se deu o trâmite do conflito. Um conflito tomado como se fosse individual, um crime de um cidadão contra a honra de outro cidadão, apartado do impacto dos efeitos sociais causados.
E pior, a sentença trouxe uma inverdade. O sociólogo foi afastado de sua cátedra, punição extrema e sem sentido, pois não foi deste lugar que foram ditas as palavras julgadas injuriosas, e, ainda que fosse, estaria recoberto pela liberdade nuclear de dizer o que se pensa, já exposta acima.
As tensões trazidas por estes debates costumam mostrar novos padrões sociais e a discussão sobre novos direitos, uma vez que, ainda que sejam necessários, a democracia não é composta apenas por procedimentos, ou seja, o jogo democrático não se resume às suas regras , mas principalmente ao seu conteúdo. A possibilidade de se colocar em discussão qual regra de direito deve ser aplicada a determinado caso pressupõe a ponderação de outros princípios também constitucionais. Trata-se de construir direitos através de valores sociais , de perceber se o que se aplica pelos Tribunais é o que a sociedade determina ou se ele ainda está impregnado de opções de fundo político e ideológico.





domingo, novembro 05, 2006

Bush, a linha do xinga mãe e o direito de propriedade

Quando eu era criança havia uma maneira de chamar para a briga. Uma criança fazia um risco no chão – com o pé, ou com um graveto- e cuspia na parte do outro ( aquele que se queria chamar para a briga). Esta linha de separação se chamava “linha do xinga mãe”.

O que se queria dizer com o singelo gesto é que havia uma quebra de continuidade na amizade. Havia pairado uma dúvida sobre alguma atitude do outro, e o conflito então era chamado como instância de resolução. A representação deste conflito se dava no desenho de um espaço de exclusão , de separação , de uma linha limite no espaço da amizade em risco.

Quando a gente cresce, a linha torna-se mais sólida e duradoura. Colocamos cercas, fios, muros como forma de deixar claro não somente um conflito. Se o muro é a representação de um sentimento de separação, resulta dele espaços do meu e do não-meu , espaços de pertencimento que a história aprisionou em um direito: o de propriedade.

O direito de propriedade tem data: iniciou com o que chamamos de modernidade, que a gente estabeleceu como início a partir da Revolução Francesa. Não que inexistisse antes disso a noção de pertencimento de algo como sendo de alguém, mas o que ocorreu foi que isso se tornou um direito,por conseguinte, passível de ser exigido seu cumprimento.

Em outras palavras, ter coisas não era uma idéia moderna, mas ter coisas e ter o poder de expulsar o outro de suas coisas, isso sim era uma invenção revolucionária.

Com o direito de ter coisas só para si, o homem precisou delimitar os espaços de seu direito único e excludente, e é o tem feito desde então, com diferentes graus de tecnologia.
Com o tempo, não só os homens particulares lançaram mão deste artifício. O próprio Estado também o fez, na tentativa de manter suas fronteiras livres de inimigos e de organizar seus espaços, suas leis e seu povo. Muitas vezes na história vimos exemplos de muros: o Muro de Berlim,e os que separavam as favelas de Soweto na África do Sul, nos tempos do apartheid são apenas dois exemplos.

Não só de muros de verdade são construídos. Muros jurídicos, de diferentes formas e tamanhos, internacionais, vistos, passaportes, cumprimento de destinos,uma enorme burocracia demonstrando um incindível sentimento de propriedade das riquezas exclusivas de um país exclusivamente para sua população. Se isso normalmente é suficiente, qual seria o motivo de Bush, ao construir um muro , agora sólido e visível?
Qual finalidade seria capaz de gerar uma clareza de exclusão de todos os povos?

Nenhuma estratégia de Estado , porém ,diminui uma certeza. O muro divide. Coloca em espaços separados pessoas ou coisas que não se quer juntos, retoma o mesmo sentimento belicoso da linha do xinga mãe, trazendo para o conflito aberto a certeza da impossibilidade da amizade e do consenso.

quinta-feira, novembro 02, 2006

Bom Dia Brasil e a cultura do medo

O Bom Dia Brasil do dia 31 de outubro , dia das bruxas, foi um dos mais assustadores dos últimos tempos.
O jornalista Alexandre Garcia tentou nos convencer que, há muito tempo, estamos, os viajantes que utilizam aviões, por um fio. Disse que a gente não sabia que corríamos riscos tão grandes , mas que o governo já sabia , há 3 anos, que isso acontecia.
Vamos analisar isso por partes.
1-Nos últimos, por exemplo, 5 anos, quantos desastres aéreos tivemos no Brasil, que, após perícia e o devido processo, tenha constatado que havia negligência, imprudência ou imperícia dos controladores de trafego aéreo?
2-O jornalista colocou o relatório supostamente enviado à presidência ou ao ministro, na tela, mas não colocou nenhuma resposta das autoridades no mesmo momento ( isso foi colocado depois, durante a semana)
O jornalista como qualquer profissional tem o dever de informar a notícia e/ou opinião devidamente fundamentada em fatos ou depoimentos das partes envolvidas. Se não o fizer, responde com responsabilidade civil ele, pessoalmente, e a empresa veiculadora da informação incompleta. Sabe por quê?
Porque a empresa de comunicação, através de seus veículos ( jornal, rádio , TV, revistas) tem como mercadoria a informação clara, precisa e fundamentada, e nós, os consumidores, compramos o serviço para que tenhamos acesso a informação . No fundo , tanto o jornalista quanto a empresa de comunicação vendem CREDIBILIDADE. Não é qualquer informação. Não é informação parcial que o consumidor pretende e compra. Assim como não é o jornal, a revista, ou o programa que a empresa vende. Isso é o suporte onde está a verdadeira mercadoria: informação completa boa e honesta.
Bem se existe uma compra e venda, estamos no terreno da relação de consumo, o que incorre na possibilidade de indenização por parte do fornecedor da informação - seja o jornalista , seja a empresa- aos consumidores que estejam submetidos, direta ou indiretamente, à informação indevidamente difundida.
A atitude do Alexandre Garcia me lembrou o livro Cultura do Medo, do Barry Glassner. Leitura excelente para que a gente perceba quantas inverdades são manipuladas pela imprensa , espalhando desconfiança sem o menor fundamento, fazendo que a gente desconfie até da nossa própria mãezinha, dos vizinhos, da professora de nossos filhos, e até do presidente da república, que pareceu um monstro distraído que, de propósito, deixou o caos acontecer para que tomasse uma decisão. Será que foi assim mesmo?
O jornalista SABE ou deveria saber, por dever de profissão, como conduzir uma matéria. Se não o faz, deve responder por ela.
Devemos portanto ficar atentos para esses medos , às vezes infundados, que nos submetem os veículos de informação. E boa viagem.

O gato da Marília saiu de casa...

Deu na Folha, 1a página, 27/10/06: Marília Gabriela e Gianecchini separaram as escovas.
E o que significa isso pro Direito?
A princípio nadinha, até porque a reportagem afirma que tudo foi na paz. Se não fosse, aí sim, o direito tinha que ser chamado. E o que ele diria?
Diria que tudo o que foi comprado para o casal, ainda que seja pra um só usar,com o dinheiro próprio, mesmo assim o companheiro(a) tem direito a metade, porque o direito parte da idéia que existe comunhão, cumplicidade e dever de sustento em todas as instâncias, no que se chama união estável. Parece estranho mas não é, afinal é uma idéia bonita, não?
Quando um casal resolve viver junto ( união estável), o direito não se preocupa na hora da união ( ao contrário do casamento), mas na hora da dissolução sim. E isso passou a existir exatamente para evitar injustiças, quando um ficava com a maior parte dos bens só porque eles estavam no nome de um deles.
Mesmo assim, o melhor mesmo é conversar e tentar a divisão por via consensual. Assim o juiz só vai assinar embaixo do que o casal decidir ( desde que, claro, o que eles decidam não seja por demais injusto ou contrário ao direito). É difícil, doloroso e demorado, mas, sem dúvida, é o melhor. Já pensou deixar alguém de fora, que não conhece o casal, que às vezes nem casado foi, resolver coisas tão íntimas?
Melhor enxugar as lágrimas, guardar o rancor e usar a cabeça. Resolver nossos problemas por nós mesmos é a melhor garantia de paz futura.