terça-feira, dezembro 26, 2006

Metrô rosinha

A lei 4.733 de 23/03/2006, editada no Rio de Janeiro confere um direito exclusivo às mulheres: andar de metrô ou trem nos horários de pico – determinado em lei como sendo de 6:00 às 9:00 horas, e das 17:00 às 20:00 horas, em vagões exclusivamente femininos. Meu irmão me perguntou: isso é discriminatório?

As leis devem ser, por princípio, para todos, sem exceções. E é uma lei, a Constituição Federal, que nos informa isso. No entanto, justamente para alcançar a igualdade real, às vezes torna-se necessário que a lei também distinga alguns grupos de sujeitos, reconhecendo que, na prática social, eles não conseguem por si só alcançarem a igualdade. Eles precisam de um “calço legal”, que são criados para que estes grupos possam relacionar-se em pé de igualdade com toda a sociedade.

A estes grupos de sujeitos são reconhecidas proteções especiais, direitos permanentes ou temporários, que deverão ser respeitados enquanto o sujeito estiver na situação que a lei descreve.

Muitos são os casos: o estatuto da criança e do adolescente e o estatuto do idoso reconhecem proteção a sujeitos que estejam em determinadas faixas etárias; gestantes e mulheres que amamentam, pessoas com moléstias consideradas graves (como câncer e AIDS), trabalhadores acidentados ou simplesmente doentes, consumidores, homens com filhos recém nascidos. Realidades sociais que podemos estar ocupando por determinados momentos ou permanentemente, nos colocando em posição de alguma desigualdade ou de desvantagem tal, que a sociedade fornece para estas situações uma lei protetiva.

Estas leis não apresentam caráter discriminatório por duas razões fundamentais: primeiro, são frutos de um consenso social que reconhece a existência de diferenças entre os cidadãos. Apresentam caráter de proteção a uma possível desigualdade, e que, em algum momento de nossa vida social podemos – ainda que não queiramos - figurar como sujeitos destes grupos. A segunda razão decorrente da primeira, é que as leis protetivas têm um caráter de generalidade, continuam sendo para todas as pessoas que estejam inseridas naquele grupo de sujeitos. Por exemplo: todos os idosos – não apenas os que moram no Rio, ou que andam de táxi, ou que são ricos. TODOS estão tutelados pela lei dos idosos, bastando que atinjam a idade por ela determinada. Assim acontece com todas as crianças, todos os adolescentes, todos os doentes, todas as gestantes. Não confere privilégios, mas reconhece direitos a grupos (sociais) de sujeitos hipossuficientes, ou seja, nas situações onde todos os pertencentes àquele grupo necessitam de auxílio (o calço) legal para que restabeleçam a condição de igualdade constitucional.

Voltando à pergunta de meu irmão, existe nesta lei alguma discriminação?

1-Qual é o grupo de sujeitos a quem a lei 4.733 alcança?
As mulheres do Rio de Janeiro (a lei é estadual) que andam de transporte ferroviário e metroviário. Não configura, pois, generalidade dos sujeitos a serem protegidos. O que existe nas mulheres cariocas que utilizam estes transportes que as diferencia das mulheres cariocas que utilizam táxi ou ônibus?

2- Qual a hipossuficiência que aparece nos vagões do estado? Onde está a desigualdade substancial tão importante a ponto de criar uma lei especial ?

Parece que o estado está querendo defender as mulheres que andam de trem e metrô partindo da premissa que elas estão à mercê de práticas de assédio masculinas. Se for isso, ele dispõe do poder de polícia e a lei dispõe de vários tipos penais para efetuar o controle social. Sem contar com as medidas sócio-educativas: câmeras, polícia para flagrar e educação básica costumam dar certo nestes casos.

A lei 4.733 não parece ter sido criada por razões de ordem jurídica. É discriminatória porque não somente as mulheres carecem de proteção para andarem de metrô ou de trem no Rio de janeiro. Está na contramão da história porque retoma uma situação há muito repudiada, uma forma de apartar parte da população por medo da outra parte, sem nenhum grau de razoabilidade nem legal nem social.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Para dizer que não falei da Gol


No começo era contra a Gol, depois passou para a empresa americana, depois para os pilotos da Gol, depois, para os da empresa americana. Depois, foi falha do transponder, depois, dos controladores, depois dos radares da Infraero. Eu pergunto: qual a causa real desta aparente confusão?

Convido os leitores a estudar um pouco de responsabilidade civil e tentar entender este conflito.

Responsabilidade é uma atitude que todas as pessoas devem apresentar e que se resume em assumir as conseqüências de seus atos ou omissões perante a sociedade, porque existe um dever de todos em não infringir danos a pessoas ou coisas.

A responsabilidade civil impõe uma indenização para tentar reparar o dano causado, caso não possa recuperar a coisa que sofreu o dano.

A estrutura da responsabilidade contém três elementos: o ato (ação ou omissão) do sujeito, o dano e o nexo de causalidade. O ato deve partir sempre de uma pessoa natural, executado com discernimento, e, como normalmente ninguém sai por aí causando dano a tudo e a todos, o direito supõe que, ao fazê-lo, seja por imprudência, negligência ou imperícia. Chamamos esse conjunto de elementos de “culpa”, causador da responsabilidade subjetiva, porque é cometido por um sujeito.

Às vezes o sujeito que executou o ato está sob comando de outro (um empregado de uma empresa). Como a empresa jamais pode responder por negligência, imprudência ou imperícia, por serem atributos somente de atos humanos, ela responde por ter escolhido mal seu funcionário, o que configura um exemplo de responsabilidade “in eligendo” .

No entanto, existem situações nas quais a natureza do objeto da empresa tem grande risco de produzir danos, ainda que se tenha muito cuidado. Nestes casos, a empresa responde diretamente – objetivamente - pelo risco já presumido, bastando que se prove o nexo de causalidade e o dano. É a obrigação de segurança que toda empresa deve apresentar e algumas devem ter mais um pouco pelo enorme risco social que representa seu objeto.

O dano ou prejuízo deve ser provado e não necessariamente deve ser uma coisa ruim. Por exemplo: se uma pessoa fizer um outdoor dizendo o quanto sou maravilhosa sob minha foto, isso pode ser considerado um evento danoso, por interferir em minha vida pessoal. E, por fim, o nexo causal é o seguinte: deve-se provar que aquele ato do sujeito, e somente ele, provocou aquele dano. Um foi causa do outro.

Assim, se um carro bate em outro, o motorista que provocou o acidente é responsável e quem sofreu o dano só tem um caminho: acioná-lo por culpa. Se o carro que colidiu for de uma empresa, quem sofreu o dano tem dois caminhos: acionar a empresa por culpa in eligendo ou o motorista por culpa. Como normalmente a empresa tem mais patrimônio, é ela a escolhida. Ela tem então ação regressiva contra o motorista, ou seja, pode cobrar dele posteriormente.

E se um avião de uma empresa abalroa um outro avião de outra empresa? A mesma coisa acontece, com um agravante: o transporte de passageiros é uma atividade de risco, sendo portanto de responsabilidade objetiva da empresa. É tão importante esta responsabilidade que ela não pode ser afastada por fato de terceiro, ou seja, ainda que uma outra pessoa (jurídica ou natural) tenha produzido uma falha mecânica AINDA ASSIM NÃO SE AFASTA A RESPONSABILIDADE DA EMPRESA TRANSPORTADORA. É o que diz o artigo 735 do Código Civil Brasileiro: “a responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva”.

Então é muito simples.

1- A empresa transportadora cujo avião colidiu com o avião da Gol deve ser acionada por ela pelo prejuízo material sofrido.
2- As famílias devem acionar a Gol por quebra de confiança porque contrato era de fim, ou seja, ela deveria ter levado seus passageiros com segurança até o destino e não o fez. Cabe, lógico, os danos morais de cada passageiro.

Este é o caminho processualmente mais rápido porque, como foi dito, nada retira a responsabilidade da empresa transportadora! Nem transponders, nem controladores, nem radares, nada! Ela é objetiva, ou seja, segurança presumida pela lei. Se a Gol quiser discutir depois, entrar com ação regressiva contra quem quiser, que faça, mas os passageiros nada têm a ver com isso!

E fica a pergunta: qual o real motivo dessa aparente confusão?

domingo, dezembro 03, 2006

HIV: entre nós e nãos

Em muitos momentos da história do mundo os homens sofreram com a presença das doenças que representavam o motivo de afastamento de suas famílias, tirando-lhes o sustento, causando dor e angústia. De certa maneira, as doenças incentivaram os homens a partirem em busca de grandes descobertas, abrindo caminhos através da superação de seus próprios limites, permitindo a reavaliação de tratamentos e métodos e, sobretudo, modificando a percepção em torno do seu significado social.

Posturas diversas foram tomadas desde a constatação da epidemia de HIV/AIDS não só no âmbito da saúde pública e farmacologia como também na reorganização do universo social e da informação de massa. O impacto da doença fez surgir uma gama de sentimentos, variando entre a indignação, indulgência e repulsa,o que fez criar ao longo do tempo, reflexos no mundo jurídico.

Estes reflexos se mostram a cada dia, nas inúmeras situações que a doença cria , gerando um núcleo essencial de novos direitos nas diversas instâncias do viver onde está o sujeito soropositivo. Isso acontece porque ao se ver compelido a percorrer uma nova trilha de ações em busca da tutela oferecida pelo Estado ou por particulares, a pessoa se vê perdida em um emaranhado de nós e nãos, que a conduzem ao desânimo e desespero .

Esses novos direitos estão ligados à personalidade do sujeito , e têm o condão de trazer à tona não somente a tutela referente ao afastamento das atividades produtivas - já garantida pelo direito previdenciário e do trabalho - mas sobretudo nas situações cotidianas de exclusão, que passam a ser uma perversa rotina na vida dos portadores de HIV/AIDS.

Um direito arcaico, unidimensional e excludente gera problemas quando não existe previsão legal imediata e dificulta em muito aquelas que, apesar de estarem amparadas pela lei, são interpretadas restritivamente, já que parte da premissa de que o sujeito doente deve ser afastado do convívio ao invés de vê-lo pleno de direitos como qualquer outra pessoa.

O grupo portador de HIV/AIDS luta pelo direito à convivência pacífica, ao trabalho e à vida, dignidades conferidas a todos , sem que se necessite assumir defesas em torno de preconceitos de toda ordem. Quer conviver em paz com a sua situação de portador de um vírus sem que precise falar todos os dias sobre a ausência de cura ou o medo da morte .

O direito deve ser chamado a cada remédio não entregue, a cada recusa de acesso ao especialista, a cada espera desmotivada nas salas que antecedem o atendimento . E deve ir além : para o jurista, dialogar com a realidade é oferecer ao soropositivo a possibilidade de fazê-lo reassumir atitudes de compreensão da dinâmica social de sua doença e instrumentalizá-lo para as várias lutas individuais e coletivas que continuarão inexoravelmente acontecendo.