terça-feira, dezembro 16, 2008

" Aprendendo com os Macuxi"


Saiu domingo, 14/12/2008, n'O Estado de São Paulo, um brilhante texto de José de Souza Martins, (A nova nacionalidade brasileira) refletindo sobre o desfecho do caso Raposa Serra do Sol.

http://txt.estado.com.br/suplementos/ali/2008/12/14/ali-1.93.19.20081214.10.1.xm


Imediatamente lembrei que em 1998, meu então professor de direito agrário Carlos Frederico Marés de Souza Filho, publicou em seu livro " O renascer dos povos indígenas para o Direito" (Editora Juruá) um texto que poderia servir para complementar a reflexão do Prof. Martins. Está na página 22, e diz o seguinte:

"Em meados de 1988 fui convidado pelos Macuxi a acompanhar a reunião anual dos tuxauas onde se discutia a demarcação da terra indígena Raposa Terra do Sol, até hoje sem solução. Como naquele momento as questões e princípios da Constituição brasileira que se estava elaborando eram objeto de ampla discussão nacional, acabada a pauta da demarcação, um dos tuxauas levantou-se e, pedindo permissão aos demais, propôs que eu lhes explicasse o que significava os termos Constituição e Constituinte e porque aí se discutia a questão indigena.Todos concordaram e fez-se um silêncio assustador. A tarde começa a cair e eu ainda podia divisar os olhos atentos em rostos de pedra, e com palavras escolhidas, expliquei a importância da Constituição e do processo constituinte que se desenvolvia. Expliquei que a Constituição garantia direitos e limitava o poder. Não foi tarefa fácil, nem estava tão seguro que pudesse dela me desincumbir.

Tive certeza que tinha conseguido explicar o que era a Constituição quando um dos tuxauas, talvez o mais calado de todos, levantou-se quando o sol já tinha se posto e uma suave e tremulante lamparina tentava inutilmente romper a escuridão, e disse em português trôpego, mas com voz pausada e firme:

"-essa tal Constituição é coisa boa, esta certo o que os brancos estão fazendo. Nós também temos que fazer uma Constituição para nós, para deixar escrito e sabido quem é que pode entrar em nossas terras e quem tem que ficar de fora, quem é que diz que podemos construir nossas casas e fazer nossas roças e quando são nossas festas."

Dito isso, várias vozes se ouviram ao mesmo tempo, a pauta foi encerrada e todos se dirigiram para uma fogueira onde se distribuía um beiju grosso acompanhado de uma bebida ácida.

Só muitos dias depois compreendi as palavras do tuxaua. Claro, a Constituição que estávamos fazendo e que tanto trabalho nos estava dando incluir os direitos indígenas e ainda que pudesse sair, como de fato saiu, a melhor Constituição acerca dos povos indígenas de tantas quanto já regeram o Brasil, não passava de uma coisa de branco, de uma forma de expressão de um direito que continuava sendo dominador, que continuava tentando incluir, teórica e formalmente, quem nunca fora incluído e, talvez, nem quisesse sê-lo.

A sabedoria do tuxaua macuxi era capaz de ver que o Estado e o Direito dos brancos que se pretende universal, geral e único, é parcial, especial, múltiplo. E o disse reclamando uma identidade jurídica que reflete uma prática escondida, escamoteada, e não raras vezes proibida pelo nosso sistema jurídico. O tuxaua entendeu em poucos minutos o que nossa cultura constitucionalista não logrou compreender em 200 anos de puro estudo e reflexão: a uma sociedade que não é una, não pode corresponder um único Direito, outras formas e outras expressões haverão de existir, ainda que simuladas, dominadas, proibidas e, por isso tudo, invisíveis."

quarta-feira, dezembro 10, 2008

"Raposa Serra do Sol" e a ineficácia instrumental do poder judiciário


A cultura jurídica brasileira é marcada por uma tradição monista, centralizada no Estado e ordenada por um sistema positivista, com raiz liberal-burguesa. Por isso, está claro que esse sistema jurídico não conseguirá dar conta de responder e muito menos administrar conflitos como o caso “ Raposa Serra do Sol”.

Este conflito, de cunho coletivo de enorme importância social, está sendo desqualificado na frente de milhões de brasileiros porque os Ministros não conseguem julgar, pura e simplesmente, o núcleo do pedido: demarcar a área da Raposa Serra do Sol em área contínua e não em “ilhas”. Esse pedido reporta questões de cunho territorial , onde o direito dos povos que ali habitam precisa ser redimensionado pela antropologia e pela geografia cultural. O conceito de território que o direito emprega não presta para avaliar esse caso.

O que acontece então? a Suprema Corte deixa de decidir para não agravar os conflitos , e quando decide, o faz cheio de condições, como se isso fosse o cerne do problema, e como se os Ministros tivessem o poder de legislar sobre o assunto O pedido foi claro, não cabe ao judiciário colocar condições ou emitir opiniões pessoais, até porque o julgamento é para este caso apenas, não se estendendo para outros.

Abaixo estão descritas as “ condições” do Ministro. Vocês podem até ler, mas o importante mesmo é que a demarcação será contínua, conforme a Constituição garante. É isso que interessa para os povos indígenas.

Notícias STF
Quarta-feira, 10 de Dezembro de 2008
Ministro Menezes Direito estabelece condições para índios viverem na Raposa Serra do Sol

O ministro Menezes Direito, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao proferir o seu voto-vista sobre a reserva indígena Raposa Serra do Sol, foi favorável à demarcação contínua das terras da região, mas apresentou dezoito condições a serem obedecidas pela população indígena. São elas:

1 – O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser suplantado de maneira genérica sempre que houver como dispõe o artigo 231 (parágrafo 6º, da Constituição Federal) o interesse público da União na forma de Lei Complementar;

2 – O usufruto dos índios não abrange a exploração de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre da autorização do Congresso Nacional;

3 – O usufruto dos índios não abrange a pesquisa e a lavra de recursos naturais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional;

4 – O usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, dependendo-se o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira;


5 – O usufruto dos índios fica condicionado ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai;


6 – A atuação das Forças Armadas da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai;


7 – O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação;


8 – O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica restrito ao ingresso, trânsito e permanência, bem como caça, pesca e extrativismo vegetal, tudo nos períodos, temporadas e condições estipuladas pela administração da unidade de conservação, que ficará sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;


9 – O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades indígenas da área, em caráter apenas opinativo, levando em conta as tradições e costumes dos indígenas, podendo, para tanto, contar com a consultoria da Funai;


10 – O trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pela administração;


11 – Deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela Funai;


12 – O ingresso, trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas;


13 – A cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público tenham sido excluídos expressamente da homologação ou não;


14 – As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico, que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade jurídica ou pelos silvícolas;


15 – É vedada, nas terras indígenas, qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutas, assim como de atividade agropecuária extrativa;


16 - Os bens do patrimônio indígena, isto é, as terras pertencentes ao domínio dos grupos e comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto no artigo 49, XVI, e 231, parágrafo 3º, da Constituição da República, bem como a renda indígena, gozam de plena isenção tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos taxas ou contribuições sobre uns e outros;


17 – É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada;


18 – Os direitos dos índios relacionados as suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis.

MG, EC//AM

Fonte: STF - http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=100568

terça-feira, dezembro 02, 2008

TRIBUNAL POPULAR:O ESTADO BRASILEIRO NO BANCO DOS RÉUS


Nesta semana ocorre em São Paulo, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, um importante evento em defesa dos Direitos Humanos, contra o Estado Penal, a Criminalização da Pobreza e dos Movimentos Sociais: o Tribunal Popular - O Estado Brasileiro no Banco dos Réus. Uma série de movimentos sociais, entidades sindicais, ativistas de Direitos Humanos e juristas estarão reunidos para dizer basta!
Maiores detalhes em :

http://www.tribunalpopular2008.blogspot.com/

TRIBUNAL POPULAR:O ESTADO BRASILEIRO NO BANCO DOS RÉUS

Desde o final dos anos oitenta, com a Constituição Federal de 1988 e com a realização regular de eleições diretas, o Brasil vem sendo considerado um Estado Democrático de Direito - sendo inclusive signatário dos principais tratados e convenções internacionais de direitos humanos.
Entretanto, os ordenamentos jurídicos que visam a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, como se verifica, não são colocados em prática. Muito ao contrário, o Estado - que, nos seus próprios termos, deveria garantir os direitos e promover a justiça social-, por meio de seus aparatos e suas instituições, viola sistematicamente os direitos das populações mais pobres das favelas, das periferias urbanas e do campo, sobretudo os jovens negros, quilombolas, indígenas e seus descendentes.

O objetivo da realização do Tribunal Popular é se contrapor às celebrações oficiais dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos ao julgar o Estado Brasileiro pelas práticas sistemáticas de violações de direitos.

O Tribunal Popular realizará 04 sessões de instruções, as quais ocorrerão nos dias 04 e 05 de dezembro de 2008 e abordarão casos emblemáticos envolvendo violência institucional do Estado:

1- Operações militares sob o pretexto de segurança pública em comunidades pobres: a chacina no Complexo do Alemão no Rio de Janeiro, em 2007, quando a força policial executou 19 pessoas;

2- A violência estatal no interior das prisões do sistema carcerário: o complexo prisional baiano e as execuções discriminadas da juventude negra e pobre na Bahia;

3- Execuções sumárias sistemáticas da juventude pobre: os crimes de maio de 2006, em São Paulo, quando foram executadas cerca de 400 pessoas em apenas oito dias, marcando uma das semanas mais violentas da história brasileira;

4- A criminalização dos movimentos sindicais, de luta pela terra, pelos direitos indígenas e quilombolas.

No dia 06 de dezembro ocorrerá a sessão final de julgamento, onde um júri composto por juristas, intelectuais, lideranças de movimentos e de entidades, artistas e principalmente vítimas destas violações e seus familiares se pronunciarão a respeito do Estado penal brasileiro.

Sessões de Instrução
04 de dezembro de 2008
1ª sessão - 9 horas
Violência estatal sob pretexto de segurança pública em comunidades urbanas pobres: dentre outros, o caso do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro
Presidente: João Pinaud, membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB.
Acusadores: Nilo Batista, jurista e fundador do Instituto Carioca de Criminologia e João Tancredo, Presidene do Instituto de Defensores de Direitos Humanos - IDDH e ex-Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ.
Defesa: representante do Estado
Participação especial: Companhia de Teatro Marginal da Maré

2ª sessão- 14 horas
Violência estatal no sistema prisional: a situação do sistema carcerário e as execuções sumárias da juventude negra pobre na Bahia
Presidente: Nilo Batista, advogado, jurista e fundador do Instituto Carioca de Criminologia
Acusador: Lio N'zumbi - membro da Associação de Familiares e Amigos de Presos da Bahia (ASFAP/BA) e da Campanha Reaja ou será Mort@/ BA.
Defesa: representante do Estado



05 de dezembro de 2008
3ª sessão- 9 horas
Violência estatal contra a juventude pobre, em sua maioria negra: os crimes de maio/2006 em São Paulo e o histórico genocida de execuções sumárias sistemáticas
Presidente: Sergio Sérvulo, jurista, ex-Procurador do Estado
Acusador: Hélio Bicudo, promotor aposentado, presidente da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos
Defesa: representante do Estado
Participação especial: Grupo Folias D'Arte

4ª sessão- 14 horas
Violência estatal contra movimentos sociais e a criminalização da luta sindical, pela terra e pelo meio ambiente
Presidente: Ricardo Gebrim, advogado, coordenador da Consulta Popular e Maria Luisa Mendonça, coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
Acusador: Onir Araújo Filho, advogado, membro do Movimento Negro Unificado
Defesa: representante do Estado
Participação especial: Aton Fon Filho, advogado do MST

Sessão Final de Julgamento
Dia 06 de dezembro - 9 horas
Presidentes: Hamilton Borges - membro da Associação de Parentes e Amigos de Presos da Bahia (ASFAP/BA) e coord. da campanha Reaja ou será mort@; Valdênia Paulino, coordenadora do Centro de Direitos Humanos de Sapopemba (SP) e Kenarik Boujikian, juíza e diretora da Associação de Juízes para a Democracia
Acusador: Plínio de Arruda Sampaio, presidente da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e diretor do "Correio da Cidadania".
Defesa: representante do Estado
Participação Especial: Kali Akuno - Movimento Malcon X Grass Roots Moviment.

Jurados Convidados: Cecília Coimbra , presidente GrupoTortura Nunca Mais -RJ; Ferréz - escritor e MC; José Guajajara - militante de movimento indígena, membro do Centro de Étnico Conhecimento Sócio-Ambiental Cauieré; Ivan Seixas, diretor do Fórum Permanente de Ex Presos e Perseguidos Políticos de São Paulo; José Arbex Jr., jornalista e escritor; Marcelo Freixo, deputado estadual PSOL-RJ; Marcelo Yuka, músico e compositor; Maria Rita Kehl, psicanalista e escritora; Paulo Arantes, professor de Filosofia da USP; Wagner Santos, músico, sobrevivente da chacina da Candelária; Waldemar Rossi, militante da Pastoral Operária e do Movimento de Oposição Sindical Matalurgica de São Paulo, aposentado; Adriana Fernandes, presidente da ASFAP/BA; e Dom Tomás Balduino, bispo emérito da cidade de Goiás e conselheiro permanente da CPT


sexta-feira, abril 25, 2008

Quem não se comunica, se trumbica: a importância do debate sobre a TV pública brasileira


No Brasil, geralmente a recuperação do bem público é constantemente abalada pela intransigência do capital privado quando ele o administra e mantém. Isso tem um motivo histórico: quanto a Inglaterra iniciou seu projeto de TV - a BBC - ela foi pensada e estruturada como estatal e coordenada pelo povo, sendo ele, inclusive, o grande financiador do projeto (pelo imposto para acessar o sistema televisivo), aqui a televisão nasceu com um empresário privado, tendo seu financiamento efetuado com a locação de espaço de propaganda, merchandising ( prática inclusive proibida pelo Código de Defesa do Consumidor) e através de firmes parcerias com outros capitalistas do setor. Quando o Estado tomou para si a responsabilidade, aconteceram altos e baixos em sua trajetória administrativa.

Sendo assim, parece evidente que esteja acontecendo esse ataque por parte das empresas privadas contra a proposta de criação e interferência estatal na programação, avocando o termo “censura” a qualquer evidência de regulação. Isso também aconteceu nos Planos de Saúde e com os bancos quando do advento do Código de Defesa do Consumidor. Essa tensão existente entre uma lei que beneficia e traz poder ao povo e os interesses de uns pouquíssimos e riquíssimos empresários faz parte do debate social, situação a qual ainda não estamos acostumados.

Precisamos, portanto, esclarecer alguns termos jurídicos importantes,iluminando os debates que, por motivos óbvios, estão fora da mídia tradicional. Iniciemos pelo dicionário do Aurélio. Lá encontramos dois significados pra censura: o primeiro, mais técnico e lingüístico, significa condenar, criticar com finalidade de correção, reprovação. Nosso principal censor, portanto , foi nossa mãe quando nos falou o primeiro: ”menino, não mexa aí!”. O outro significado, bem mais específico e assustador, é aquele que diz: “exame de qualquer texto de caráter artístico ou informativo, feito por censor a fim de autorizar sua publicação, exibição ou divulgação”. Parece evidente que, ao se referir à censura, a Constituição Federal fala da segunda hipótese.

Regulação também pode ter dois significados: quando dizemos que nosso irmão está regulando o pudim, quer dizer que ele está nos censurando no primeiro sentido descrito acima. Do ponto de vista jurídico, a regulação é a criação de legislação seguida de fiscalização do Estado sobre um setor econômico, e deve ser produzida e executada conforme a Constituição Federal. No caso da TV pública, regular significa, sim, uma restrição à liberdade de atuação das emissoras de televisão prevista na Constituição, que sobre o assunto, diz o seguinte:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
IV - águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;

O artigo 221, inclusive, oferece direitos difusos a todo o povo brasileiro, sob a forma de princípios:


Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

O que acontece é que as emissoras de televisão confundem a população dizendo que o Estado está censurando a programação, quando, na realidade, está executando uma obrigação constitucional através de um ato absolutamente lícito chamado Regulação.

Outro ponto a ser esclarecido é a diferença entre serviço público e atividade econômica. O serviço público atua para satisfazer as necessidades da população, através dos bens, espaços públicos e verbas destinadas a este objetivo. Já atividade econômica é o exercício das empresas privadas que estão recobertas pelo artigo 170 da Constituição:


“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:”
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;

É importante notar que, ainda que esteja configurada a hipótese de livre concorrência e livre iniciativa, ambas devem estar, na sua gênese, configuradas pela valorização do trabalho, pela garantia de proporcionar uma existência digna para toda a população do Estado brasileiro, tudo isso encabeçado pelo Princípio da Justiça Social.

Embora caiba ao poder público atuar diretamente na efetivação do serviço público, ele pode ser prestado por particulares mediante delegação realizada através dos institutos jurídicos da concessão e da permissão, conforme o artigo 175 da Constituição Federal. Então, ainda que exercício de um serviço público ocorra pela mediação de um terceiro, no caso as empresas de telecomunicação e radiodifusão, a finalidade continua a mesma: a satisfação e segurança da população, que tem valor jurídico superior ao principal interesse das empresas privadas - o lucro. Por isso, a empresa que detém a concessão ou permissão está subordinada aos interesses públicos, demonstrados, por exemplo, pela regulação da área concedida. Isso está lá na Constituição, no artigo 21:


“XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;
XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:
a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens.


Diante desses pontos, constata-se a perfeita legalidade do Conselho Curador da EBC- TV Brasil, onde dos vinte e dois membros, quinze são representantes da sociedade civil, e busca melhorar uma legislação não representativa dos interesse públicos atuais, e que, entre outras coisas, mostra poucas disposições sobre o conteúdo da programação a ser distribuída.

E para seguir o famoso ditado do querido Velho Guerreiro - O Chacrinha - e a gente deixar de se trumbicar pela ausência de comunicação, repasso a todos o texto de um membro do Conselho Curador da Empresa Brasileira de Comunicação – TV Brasil, o jurista Luiz Edson Fachin, que o publicou no jornal Gazeta do Povo do Paraná,na seção Opinião, no dia 22/4/2008.


Por uma TV Pública independente

O Poder Legislativo deu sinal verde para a proposta que cria a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), com o objetivo de implantar e conduzir a TV Pública. Quais são agora os possíveis rumos dessa TV Brasil?
Na teoria, respeito à diversidade, imparcialidade, transparência e precisão podem abrir o leque de possíveis diretrizes que devem ser seguidas. Nada obstante, a que e a quem servirão?
Evidente que se almeja um veículo de boa qualidade, sem interesses comerciais, dirigido à educação, à cultura e à informação útil de interesse público. Um instrumento a serviço da sociedade, fundado em clara identidade que não se confunda com o legítimo espaço da iniciativa privada.
Contudo, tem a sociedade o direito de saber e de fiscalizar como será a prática dessa promessa. Ademais, não basta, no Brasil, produção de conteúdo de altíssima qualidade técnica.
É preciso ter-se claro que também se encontram no fundamento de uma rede de televisão pública, os objetivos fundamentais da República: construir uma sociedade justa, livre e solidária, erradicar a pobreza e marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, garantir o desenvolvimento, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação.
É um desafio na agenda de inclusão, apta a suplantar passivos históricos e a transformar estruturas sociais injustas.
O que também se espera é a democratização da informação com completa desvinculação de interesses partidários, com respeito à livre iniciativa, às identidades culturais e à participação ativa da sociedade na fiscalização da TV Pública. Superar, enfim, a hegemonia de produções de conteúdo e de transmissão.
Sendo assim, deve ser mirada na EBC a criação não de uma TV de Governo, e sim um instrumento da coletividade e do Estado brasileiro. Não se presta a TV Pública a amplificar a voz deste ou daquele governante. Cabe, isto sim, à TV Pública, respeitando os instrumentais já existentes, contribuir para a materialização dos ideais do Estado Democrático de Direito.
Ainda mais: é fundamental a distância entre as fontes de financiamento e a produção, que deve ser estimulada pela emissora em todo o País.

Veja-se o exemplo da BBC, a rede de televisão pública da Inglaterra, que é financiada diretamente pelos cidadãos, além da destinação de repasse governamental e da venda de espaços na grade.
Para além da autonomia financeira, a BBC tem um canal direto de comunicação com os telespectadores e autonomia de conteúdo. Durante a guerra das Malvinas, entre Inglaterra e Argentina, Margareth Thatcher lançou mão de todo seu poderio para censurar a cobertura que a rede fazia sobre o conflito. O esforço foi em vão graças à resistência dos dirigentes da BBC, com o respaldo da opinião pública.
Episódio semelhante se passou com a entrada da Inglaterra na Guerra do Iraque, mantendo-se a BBC distante dos interesses do então primeiro-ministro Tony Blair.
Espera-se da EBC a consciência social imposta aos instrumentos republicanos. De tal missão não pode furtar-se a própria sociedade e o Congresso Nacional, bem como o Conselho Curador, cujos deveres fiscalizatórios exigem eficaz atuação.
Deve o Conselho Curador surgir e atuar desinstalado do costumeiro caráter meramente homologatório que assumem colegiados dessa natureza tomados pelo conformismo. Tem, por certo, o dever (e o direito) de ver (e fazer) o discurso transformado em práxis.

O Brasil vai vencer esse desafio? O futuro, em breve, dará essa resposta.


terça-feira, fevereiro 26, 2008

Sob a bênção da lei

Muito se falou nesses últimos dias sobre as ações impetradas pelos fiés da Igreja Universal do Reino de Deus contra os jornais Folha de São Paulo, A Tarde, Extra e o Globo, e pessoalmente contra a jornalista Elvira Lobato. As ações indenizatórias, tomam como base a reportagem veiculada inicialmente nos jornais A Tarde (Bahia) e Extra (Rio de Janeiro) que noticiaram a agressão a uma imagem de São Benedito por um seguidor da Igreja Universal. A Folha de S.Paulo, publicou em dezembro, uma matéria assinada pela jornalista acima, mostrando como o fundador da Universal, o Sr. Edir Macedo, usou o dinheiro do dízimo para montar um império empresarial.

A Imprensa saiu corporativamente a favor da jornalista e dos veículos, atitude já esperada. Organizei a linha dos argumentos publicados desde então, que expõe a opinião de advogados das empresas jornalísticas, de consultores e até de Ministros do STF. Gostaria de comentar alguns:

1- As ações são um “atentado à liberdade de imprensa, à liberdade de expressão e à democracia” isso porque as ações são pessoais, foram protocoladas em vários lugares do país, apresentam argumentos repetitivos e idênticos e pedem dano moral de valor baixo.
Quanto ao fato das ações partirem dos fiés, esse direito é constitucional, chama-se direito de petição, e, ao contrário do que foi alegado, é o mais emblemático direito da democracia. Cada pessoa que se sinta aviltada em seu direito pode acionar a justiça para reclamá-lo e, provando ter sofrido dano moral, pedir indenização no valor que estimar ou deixar que o magistrado a arbitre. É bom que se diga que a doutrina mais avançada de Direito Civil (no Brasil representada pela Professora Maria Celina Bodin de Moraes), ensina que o dano pode ser proveniente até de uma mensagem positiva. Por exemplo: se alguém tira uma bela fotografia, e a coloca em um veículo de circulação (nem precisa ser de grande circulação) junto com os dizeres: “fulano é o melhor funcionário da empresa” ou “é a melhor mãe do mundo”, corre o risco de ser processado por dano moral, ainda que o conteúdo da mensagem não seja ofensivo. Milhões são os exemplos, só para falar um caso recente e famoso, cito Roberto Carlos, que tirou de circulação o livro que nada tinha de ofensivo, mas, segundo ele, havia lhe provocado dano.

Com relação ao argumento que as ações estão espalhadas pelo Brasil, a lei diz que o autor protocola a ação no seu domicilio. Quanto aos argumentos das petições serem repetitivos e idênticos, isso é comum em ações trabalhistas, por exemplo. Nos juizados especiais do consumidor também é expediente muito utilizado principalmente pelas instituições financeiras, de telefonia, e de saúde, que utilizam os mesmos argumentos contra os milhões de consumidores todos os dias. E nunca disseram que houve atentado à democracia por isso.

2- Falta de legitimidade da parte
O artigo 3º do Código de Processo Civil avisa que só pode propor ou contestar ação quem tem interesse direto nela e quem tem legitimidade. Tem interesse quando o resultado da ação influencia direito próprio (claro que isso quando se está falando de ações individuais e coletivas clássicas. As que tratam de interesses difusos, do mundo todo, como meio ambiente e consumidor, isso cai por terra, porque todos no mundo têm o direito a um meio ambiente saudável e a comer um iogurte em perfeito estado de conservação. Apesar de ser outra história, prova que isso, hoje em dia, não é tão absoluto assim). É legítimo quem a lei diz que pode figurar na ação. O que eu li na imprensa é que as ações não deveriam ser impetradas pelos fiés e sim pela Igreja, que deveria reclamar dano moral. Bem, isso remete a outra questão, sobre se pessoas jurídicas podem pleitear dano moral, já que não têm sentimentos como vergonha, por exemplo. Podem, no máximo, terem danos à imagem, nada que um bom departamento de marketing não resolva. Já quando acontece de uma pessoa estar permanentemente envergonhada por um fato que lhe foi imputado, nada poderia restituir-lhe sua credibilidade social. Pode ser o caso dos fiés. Imagine ser alvo de chacota por fazer parte de uma Igreja. Apesar dos jornais, advogados e até Ministros misturarem os conceitos, não há nenhuma ilegimidade de parte, pois, como disse acima, cada membro da Igreja se sentiu pessoalmente atacado e pode pleitear o direito individual ou coletivamente.

A ação foi impetrada contra o jornal e contra a jornalista, pois ela assinou, sendo responsável pessoalmente. Por isso, quando jornalistas assinam matérias recheadas pelos editores, ainda que tenham vínculo empregatício (cada vez mais raro hoje em dia) que tenham cautela. Isso pode gerar responsabilidade pessoal, civil , criminal e ética.

3- litigância de má-fé
O Código de Processo Civil no capitulo II (“Dos deveres das partes e dos seus procuradores”), artigo 14 e seus incisos, diz entre outras coisas, que todos os que participam do processo devem expor os fatos em juízo conforme a verdade, com lealdade e boa-fé, não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa de direitos. No artigo 16, lembra que, quem assim proceder, responderá por perdas e danos (se perdas e danos forem provados, que fique claro), e no artigo 17 dispõe claramente as situações nas quais o litigante age com má-fé :

“Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que:
I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
II - alterar a verdade dos fatos;
III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;
V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;
VI - provocar incidentes manifestamente infundados”.

Litigância de má-fé é, em resumo, entrar com ação mesmo sabendo não ter amparo em lei, ou sabendo não ter razão, ou criar situações anormais no processo para confundir as partes, faltar com a verdade, subtrair provas, opor-se sem fundamento, etc. A imprensa não divulgou dados que provem a litigância, apenas insinua o inciso III, mas também ela deve provar isso, de preferência antes de acusar os fiés.

Diante disso, até agora, não vejo fundamento jurídico que possa provar tais acusações. É verdade que não tive acesso aos autos, mas a população brasileira também não, apenas me baseio nos noticiários dos jornais. Talvez os fiéis tenham usado uma estratégia não convencional, mas não se configura, até o presente momento, em nada que algum advogado já não tenha utilizado na defesa de seus clientes.

quarta-feira, janeiro 16, 2008

Usos e abusos das medidas provisórias




O Professor Dr. Luiz Edson Fachin, que além de civilista, humanista e adorável sonhador também é meu orientador, escreveu essa pequena crítica sobre as Medidas Provisórias no Governo Lula, e gentilmente me permitiu publicá-la nesse espaço.



Vale a pena conferir. Obrigada, Fachin!

Tornou-se lugar comum apontar abuso na utilização das medidas provisórias. Impende, nada obstante, rever a contextualização desse instrumento como criado em 1988. Naquela atmosfera, em consonância com a restauração democrática, extirpou-se o decreto-lei. Ao fazê-lo, buscou-se conferir, mediante uso racional de outro meio, celeridade na gestão do Estado, sem avançar contra o balanço entre os Poderes. A promessa fazia sentido.

Nesse berço foi gerada a medida provisória, embalando-se, em parte, de experiência similar existente em alguns países. Assim, a Constituição propiciou ao Executivo a possibilidade de edição de lei material, sob controle parlamentar. Sepultou ali, formalmente, o decreto-lei.

Nada obstante, o País que viu o constituinte selar pacto antenupcial para limitar essa atuação legiferante no casamento entre o Executivo e a medida provisória, acordou atônito logo após brevíssima lua-de-mel, com colossal edição de MPs. Justificativas não faltam.

Não se governa sem medida provisória, declarou eminente Ministro da Justiça. Com efeito, basta ver alguns dados: no Governo José Sarney, 125 MPs, Fernando Collor, 89; Itamar Franco, 142; Fernando Henrique, 160 no primeiro mandato, e 103 no segundo.

A seu turno, o Presidente Lula vem de editar, agora em 3 de janeiro, a MP 413, dispondo sobre tributação e turismo. Encerrou o ano de 2007 com 70 medidas provisórias; a maior parte daquele elenco foi de matéria de verba orçamentária suplementar, destinada a Estados, Municípios, militares, bombeiros, entre outros.

De tais medidas originárias, a maioria, ressalte-se, foi aprovada pelo Congresso.

A proliferação tem navegado nessas ondas e na concessão ainda maior que ao Executivo fez o Congresso Nacional ao editar, em 2001, a Emenda Constitucional 32, por intermédio da qual alterou o art. 62 da Carta Magna. Como decorrência, eliminou a automática convocação do Congresso, caso estivesse em recesso, e fez letra morta do prazo de eficácia de trinta dias, caso não fosse convertida em lei. Foram beneplacitadas todas as medidas provisórias editadas antes de 11.09.2001, mantendo-as em vigor "até que medida ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação do Congresso Nacional".

Com essa moldura, ampliou-se sobremaneira o retrato da MP. O provisório se revelou permanente.

Chamado a desatar alguns nós que daí emergiram, o Poder Judiciário em diversas ocasiões apenas secundou o Executivo, como fez o STF, quer no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade 1.417, na qual deliberou que a conversão em lei da medida provisória supera por si só a contestação do preenchimento dos requisitos de urgência e relevância, quer no Recurso Extraordinário 232.896, chancelando força de lei à medida provisória não apreciada pelo Congresso, mas reeditada por meio de nova medida. Em outras oportunidades o STF desempenhou substancial papel quando, por exemplo, na ação direta de inconstitucionalidade 1.135, em matéria de previdência social, sufragou inconstitucionalidade da MP por violação da regra da anterioridade.

Na sinfonia democrática dos três poderes, não pode haver resignação de algum deles à condição de segundo violino da orquestra.

Não se advoga, porém, a simples extinção das medidas provisórias do processo legislativo. Também não se sustenta que cumpre ao Supremo Tribunal Federal o papel exclusivo de decidir sobre limites e possibilidades diante do caso concreto.

A questão requer compreensão contextualizada, apta a não passar uma simples borracha para apagar o pretérito, a não vislumbrar o presente e contribuir para semear ainda mais descrédito futuro aos poderes democraticamente constituídos. A esse debate não se pode comparecer operando verdes bravatas retóricas como fosse um "baile de máscara". Compete não confundir a função com o abuso respectivo: a advocacia não se identifica com o advogado que viola código de ética; a magistratura não se espelha no juiz que infringe regras de sua deontologia; e o parlamento não se resume a quem dele se serve ao invés de nele servir à sociedade.

É necessário encontrar ponto de equilíbrio, um novo paradigma que deve resultar desse movimento pendular. O controle primário do uso é dever do Poder Legislativo (daí a importância da consciência do eleitor na escolha de seus integrantes); na ausência desse exercício parlamentar, o exame dos limites constitucionais caberá ao Judiciário, ceifando, de plano, os excessos.

Espera-se que o futuro seja testemunha de que a criação da medida provisória não tenha sido tão-só um requentar do decreto-lei. O desafio está no ar: quando o ontem pauta o porvir, ele transforma em pesadelo os sonhos outrora acalentados.
Tornou-se lugar comum apontar abuso na utilização das medidas provisórias. Impende, nada obstante, rever a contextualização desse instrumento como criado em 1988. Naquela atmosfera, em consonância com a restauração democrática, extirpou-se o decreto-lei. Ao fazê-lo, buscou-se conferir, mediante uso racional de outro meio, celeridade na gestão do Estado, sem avançar contra o balanço entre os Poderes. A promessa fazia sentido.

Nesse berço foi gerada a medida provisória, embalando-se, em parte, de experiência similar existente em alguns países. Assim, a Constituição propiciou ao Executivo a possibilidade de edição de lei material, sob controle parlamentar. Sepultou ali, formalmente, o decreto-lei.

Nada obstante, o País que viu o constituinte selar pacto antenupcial para limitar essa atuação legiferante no casamento entre o Executivo e a medida provisória, acordou atônito logo após brevíssima lua-de-mel, com colossal edição de MPs. Justificativas não faltam.

Não se governa sem medida provisória, declarou eminente Ministro da Justiça. Com efeito, basta ver alguns dados: no Governo José Sarney, 125 MPs, Fernando Collor, 89; Itamar Franco, 142; Fernando Henrique, 160 no primeiro mandato, e 103 no segundo.

A seu turno, o Presidente Lula vem de editar, agora em 3 de janeiro, a MP 413, dispondo sobre tributação e turismo. Encerrou o ano de 2007 com 70 medidas provisórias; a maior parte daquele elenco foi de matéria de verba orçamentária suplementar, destinada a Estados, Municípios, militares, bombeiros, entre outros.

De tais medidas originárias, a maioria, ressalte-se, foi aprovada pelo Congresso.

A proliferação tem navegado nessas ondas e na concessão ainda maior que ao Executivo fez o Congresso Nacional ao editar, em 2001, a Emenda Constitucional 32, por intermédio da qual alterou o art. 62 da Carta Magna. Como decorrência, eliminou a automática convocação do Congresso, caso estivesse em recesso, e fez letra morta do prazo de eficácia de trinta dias, caso não fosse convertida em lei. Foram beneplacitadas todas as medidas provisórias editadas antes de 11.09.2001, mantendo-as em vigor "até que medida ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação do Congresso Nacional".

Com essa moldura, ampliou-se sobremaneira o retrato da MP. O provisório se revelou permanente.

Chamado a desatar alguns nós que daí emergiram, o Poder Judiciário em diversas ocasiões apenas secundou o Executivo, como fez o STF, quer no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade 1.417, na qual deliberou que a conversão em lei da medida provisória supera por si só a contestação do preenchimento dos requisitos de urgência e relevância, quer no Recurso Extraordinário 232.896, chancelando força de lei à medida provisória não apreciada pelo Congresso, mas reeditada por meio de nova medida. Em outras oportunidades o STF desempenhou substancial papel quando, por exemplo, na ação direta de inconstitucionalidade 1.135, em matéria de previdência social, sufragou inconstitucionalidade da MP por violação da regra da anterioridade.

Na sinfonia democrática dos três poderes, não pode haver resignação de algum deles à condição de segundo violino da orquestra.

Não se advoga, porém, a simples extinção das medidas provisórias do processo legislativo. Também não se sustenta que cumpre ao Supremo Tribunal Federal o papel exclusivo de decidir sobre limites e possibilidades diante do caso concreto.

A questão requer compreensão contextualizada, apta a não passar uma simples borracha para apagar o pretérito, a não vislumbrar o presente e contribuir para semear ainda mais descrédito futuro aos poderes democraticamente constituídos. A esse debate não se pode comparecer operando verdes bravatas retóricas como fosse um "baile de máscara". Compete não confundir a função com o abuso respectivo: a advocacia não se identifica com o advogado que viola código de ética; a magistratura não se espelha no juiz que infringe regras de sua deontologia; e o parlamento não se resume a quem dele se serve ao invés de nele servir à sociedade.

É necessário encontrar ponto de equilíbrio, um novo paradigma que deve resultar desse movimento pendular. O controle primário do uso é dever do Poder Legislativo (daí a importância da consciência do eleitor na escolha de seus integrantes); na ausência desse exercício parlamentar, o exame dos limites constitucionais caberá ao Judiciário, ceifando, de plano, os excessos.

Espera-se que o futuro seja testemunha de que a criação da medida provisória não tenha sido tão-só um requentar do decreto-lei. O desafio está no ar: quando o ontem pauta o porvir, ele transforma em pesadelo os sonhos outrora acalentados.