terça-feira, dezembro 16, 2008

" Aprendendo com os Macuxi"


Saiu domingo, 14/12/2008, n'O Estado de São Paulo, um brilhante texto de José de Souza Martins, (A nova nacionalidade brasileira) refletindo sobre o desfecho do caso Raposa Serra do Sol.

http://txt.estado.com.br/suplementos/ali/2008/12/14/ali-1.93.19.20081214.10.1.xm


Imediatamente lembrei que em 1998, meu então professor de direito agrário Carlos Frederico Marés de Souza Filho, publicou em seu livro " O renascer dos povos indígenas para o Direito" (Editora Juruá) um texto que poderia servir para complementar a reflexão do Prof. Martins. Está na página 22, e diz o seguinte:

"Em meados de 1988 fui convidado pelos Macuxi a acompanhar a reunião anual dos tuxauas onde se discutia a demarcação da terra indígena Raposa Terra do Sol, até hoje sem solução. Como naquele momento as questões e princípios da Constituição brasileira que se estava elaborando eram objeto de ampla discussão nacional, acabada a pauta da demarcação, um dos tuxauas levantou-se e, pedindo permissão aos demais, propôs que eu lhes explicasse o que significava os termos Constituição e Constituinte e porque aí se discutia a questão indigena.Todos concordaram e fez-se um silêncio assustador. A tarde começa a cair e eu ainda podia divisar os olhos atentos em rostos de pedra, e com palavras escolhidas, expliquei a importância da Constituição e do processo constituinte que se desenvolvia. Expliquei que a Constituição garantia direitos e limitava o poder. Não foi tarefa fácil, nem estava tão seguro que pudesse dela me desincumbir.

Tive certeza que tinha conseguido explicar o que era a Constituição quando um dos tuxauas, talvez o mais calado de todos, levantou-se quando o sol já tinha se posto e uma suave e tremulante lamparina tentava inutilmente romper a escuridão, e disse em português trôpego, mas com voz pausada e firme:

"-essa tal Constituição é coisa boa, esta certo o que os brancos estão fazendo. Nós também temos que fazer uma Constituição para nós, para deixar escrito e sabido quem é que pode entrar em nossas terras e quem tem que ficar de fora, quem é que diz que podemos construir nossas casas e fazer nossas roças e quando são nossas festas."

Dito isso, várias vozes se ouviram ao mesmo tempo, a pauta foi encerrada e todos se dirigiram para uma fogueira onde se distribuía um beiju grosso acompanhado de uma bebida ácida.

Só muitos dias depois compreendi as palavras do tuxaua. Claro, a Constituição que estávamos fazendo e que tanto trabalho nos estava dando incluir os direitos indígenas e ainda que pudesse sair, como de fato saiu, a melhor Constituição acerca dos povos indígenas de tantas quanto já regeram o Brasil, não passava de uma coisa de branco, de uma forma de expressão de um direito que continuava sendo dominador, que continuava tentando incluir, teórica e formalmente, quem nunca fora incluído e, talvez, nem quisesse sê-lo.

A sabedoria do tuxaua macuxi era capaz de ver que o Estado e o Direito dos brancos que se pretende universal, geral e único, é parcial, especial, múltiplo. E o disse reclamando uma identidade jurídica que reflete uma prática escondida, escamoteada, e não raras vezes proibida pelo nosso sistema jurídico. O tuxaua entendeu em poucos minutos o que nossa cultura constitucionalista não logrou compreender em 200 anos de puro estudo e reflexão: a uma sociedade que não é una, não pode corresponder um único Direito, outras formas e outras expressões haverão de existir, ainda que simuladas, dominadas, proibidas e, por isso tudo, invisíveis."

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