segunda-feira, setembro 17, 2007

Se essa rua fosse minha, se esse muro fosse meu...




Saiu no Caderno 2 do jornal “A Tarde” de Salvador em 15/09/2007, uma interessante discussão sobre um protesto dos grafiteiros contra o artista plástico Willyans Martins. O artista trabalhou em sua dissertação a “poética do deslocamento” que consiste em, segundo o artista , retirar as obras dos muros e deslocá-las para as galerias. Para executar a proposta, ele aplica uma resina diretamente nos muros grafitados, deslocando parte do trabalho para a galeria onde expõe. (veja as fotos acima. À esquerda, a obra completa. À direita,a mesma obra após a retirada )

Andy Warhol, na década de 70, já utilizava o conceito de “ready made”, ou seja, retirar elementos do cotidiano das pessoas e transportá-los para o campo das artes. Quem não lembra do urinol de Marcel Duchamp?

O protesto dos grafiteiros funda-se três idéias básicas: (I) que não há referência dos autores da obra quando exposta pelo artista na galeria, (II) que é retirada parte da obra , modificando sua essência e, (III) que a obra realizada pelos grafiteiros deve estar na rua, por fazer parte do espaço público.

A discussão ultrapassa a idéia do simples direitos de autor e transita na compreensão da extensão do publico e do privado.

A modernidade se construiu em dois pilares : o direito organizou tudo que havia no mundo entre público e privado, determinando e equacionando as coisas em bens apropriáveis e, conseqüentemente, neste caso, conferindo poder ao sujeito de expulsar a ingerência do outro. O público ficou sendo o “de todos”, mas com um único titular, o poder público, que é um sujeito que administra os bens de todos. Para circular tudo isso, inventou-se o contrato.

O outro pilar foi a economia com base no capital: ela deslocou o padrão universal de troca, para a moeda e para o trabalho, pois antes o homem trabalhava para si e para a comunidade e passou a trabalhar para o outro fazendo apenas pedaços das coisas e recebendo salário em troca.

Neste cenário moderno , o direito tratou a obra do artista meio aos frangalhos porque não cabe nessa lógica: seu trabalho, sua criação, não é apropriável, seu quadro sim. O suporte onde se realiza a obra é o que circula no mundo do capital, mas a criação está protegida integralmente. E como se protege? Colocando o nome (crédito), pedindo autorização ao artista, que pode ou não aceitar a exposição de sua obra.

Os grafiteiros alegam que sua obra só apresenta sentido se o suporte é a rua, onde o muro existe em sua função original. Eles querem dizer mais. O suporte do chamado artista de rua (incluindo aí grafiteiros, palhaços, mímicos, estátuas vivas, atores de teatro, etc) é o espaço. Este é revisitado e reconstruído a cada apresentação, e sua essência artística é a efemeridade do instante público. O espaço aqui ultrapassa ,em muito, o pequeno “espaço público” de que trata o direito em seu padrão baseado no capital. É o espaço cultural, onde o suporte é a forma de ocupação do mundo. O muro então se transforma em outro lugar, em uma grande tela, a rua é o palco do mímico e do palhaço. No entanto, o universo redutor do direito só pode considerá-lo através do conceito de bem cultural, com sua respectiva proteção estatal.

O dano poderia ter sido minimizado se o artista plástico tivesse tido o cuidado de perguntar aos seus colegas, também artistas plásticos (ainda que sem o diploma de mestre), se poderia realizar a exposição, que aí seria um conjunto de obras a partir de outras. Ainda assim perderia parte do seu sentido, porque o objetivo principal do grafitti, criado no interior do movimento hip-hop, é justamente ser colocado na rua e não em galerias. Por outro lado, o direito também precisa rever seus conceitos, considerando como espaços públicos não só aqueles cujo poder de intervenção seja do Estado, mas, sobretudo, aqueles que abrigam todas as formas do viver.
(quem quiser ver os trabalhos e o protesto dos grafiteiros, vá ao site

quarta-feira, setembro 05, 2007

Saúde!

Quando era criança, minha mãe via suas plantas amareladas e dizia que elas estavam doentes. Minhas bonecas ficavam doentes, meus pés ficavam doentes quando eu andava muito. Minha alma ficava doente quando eu ficava triste.

Povos antigos relacionavam seus mitos de criação aos sentimentos dos deuses e seus filhos, e a doença era explicada pela ausência de ligação entre o espírito e o corpo, porque ambos eram uma só coisa gerando um só resultado.

O conceito de saúde da OMS ("saúde é um estado de completo bem estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”), mostra que a saúde é um estado, uma maneira de estar no mundo, de poder atuar enquanto humano nas dimensões da sua subjetividade. Saúde é um conceito subjetivo, portanto cultural, mutável, instável, relacional. Por isso, a saúde não pode ser construída individualmente, ela é, essencialmente, coletiva. Passa pela forma de cuidar de si e dos outros. Um exemplo? A vacinação contra a paralisia infantil. De nada adianta meu filho estar vacinado se todas as crianças não forem também, porque ele terá sido vacinado mas não imunizado. A imunização é um conceito relacional. Uma população, um grupo, uma comunidade pode ser imunizada, não apenas um indivíduo.

A saúde passa a ser um direito exatamente quando ela se perde. Basta pensar que a própria OMS é um resultado do pós-guerra. A saúde passa a ser direito quando o Estado precisa intervir para garanti-la, e só se garante algo quando se está em vias de perder esse algo.

O direito passa a ser um limite, um mínimo, aquilo que resta, o que sobra para podermos sobreviver. Cada direito que nasce não é um ganho, é uma perda. É a constatação que se extinguiu e precisamos salvar o que resta.

O artigo 196 da Constituição prevê o direito à saúde que o Estado propõe ao cidadão: ser de todos indiscriminadamente, garantido por políticas públicas com ações de promoção, proteção e recuperação, visando a redução dos riscos das doenças. Esta percepção de saúde, como foi dito acima, não é suficiente porque é a tentativa de equiparar a saúde a um direito administrativo de organização da saúde. Visto assim, é um direito redutor e insuficiente inclusive do ponto de vista da OMS.

A saúde deve ser encarada de forma abrangente e profunda, conforme determinação, constitucional de direito social e de garantia da dignidade das pessoas, e o que o Estado deve garantir (além do que já garante) é a inserção de todos a uma vida digna, com boa alimentação, lazer, salários adequados, moradia e tranqüilidade econômica, encarando tudo isso como parte da saúde da população brasileira.